Portugalid[Arte] #101
uma viagem com Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz, as músicas das últimas duas semana, Ruído, Lume, Nada Disto é Por Acaso, Violetta (film), seis episódios de podcast e sugestões culturais
[estante cápsula]
Educação da Tristeza, Valter Hugo Mãe
A perda vem revestida de um longo nevoeiro, que não tem de ser continuo, que pode ir só polvilhando os nossos dias em apontamentos que despertam memórias específicas. E algo que tenho sentido é que o tempo, afinal, não cura tudo: por um lado, ameniza a dor, contudo, por outro, torna ainda mais nítida a carência. A diferença é que talvez saibamos reunir ferramentas que nos tornem funcionais perante o processo de luto. O novo livro de Valter Hugo Mãe deixou-me a deambular por estas sensações ambíguas.
Gatilhos: Luto, Linguagem Explícita
Educação da Tristeza concentra-se naqueles que perdemos e que «somam à ausência mas são nosso património mais delicado, um reduto de fortuna e saudade que detemos mais delicadamente do que ouro». Compilando textos unidos por este laço emotivo, o autor constrói um retrato intimista, que vem inverter a imagem que temos da dor: não com o intuito de a reprimirmos, mas com a intenção de nos mostrar outra perspetiva, visto que «uma tristeza educada não desaparece», pelo contrário, «torna-se respeitosa com a necessidade de sobreviver, de continuar a lembrar, de continuar a amar».
O tom diarístico aproxima-nos, até porque compreendemos que aquelas palavras vêm de um lugar muito pessoal, vêm de um lugar que conseguimos reconhecer por mais que as nossas histórias divirjam. Não obstante, sinto que Valter Hugo Mãe tem uma sensibilidade distinta a abordar estes assuntos, atendendo a que não tem pudor em realçar a injustiça, o sofrimento, a revolta e o egoísmo perante a morte. Como é que aquela pessoa teve a ousadia de nos abandonar? Quantos de nós não cobramos o seu desaparecimento, como se estivesse nas suas mãos impedi-lo? Este é um dos limbos que a dor potencia e que o autor explora de um modo exímio, numa voz quase coletiva.
Mergulhar nestas crónicas foi uma viagem intensa, sensível, cómica e sempre poética. E creio que chegou na altura perfeita, porque veio apaziguar uma ferida que continua exposta no meu peito: o ano passado, tive de me despedir do meu tio Mário, uma das pessoas mais importantes da minha vida. Continuo a lembrar-me dele com frequência, mas há datas que nos pesam mais e a altura do S. João é uma delas, porque tínhamos tradições muito nossas e que agora me faltam. Ler este livro não inverteu a narrativa, ainda assim, permitiu-me olhar para o cenário de uma forma que nunca tinha feito. A ausência persiste - persistirá sempre -, no entanto, «quem nos falta não pode ser ferido de tristeza. A saudade tem de vir à festa e ser presença que celebra» e eu celebrei-o.
Foi duro cruzar-me com certas passagens, mas Valter Hugo Mãe teve a capacidade de transformar a dor em arte, iluminando as zonas escuras que nos habitam, fazendo-nos olhar para lá das sombras que o vazio nos deixa como herança. Em simultâneo, achei interessante que trouxesse para a discussão o facto de sabermos que a pessoa faleceu, mas sermos confrontados com pequenas epifanias que parecem trazê-la de volta. De repente, caímos na realidade e há um novo processo de luto. Portanto, esta obra vai-nos confrontando com as nossas oscilações emocionais e com as diferentes fases de superação que qualquer despedida irreversível acarreta, porque nunca nada é linear.
Educação da Tristeza é um objeto visualmente lindíssimo, cheio de cor, de vida e de memórias que nos amparam e que trazem esperança. Com ilustrações de Valter Hugo Mãe, parte da ausência para nos fazer refletir sobre o quanto a nossa vida é cheia por termos tido aquelas pessoas por perto. Também é por isso que a sua perda nos magoa mais, mas continuo a acreditar que as saudades partem de um lugar benigno, de um amor que é incondicional. O quotidiano fica fragmentado, mas nunca esqueceremos.
🎧 Banda Sonora: A Felicidade, Tom Jobim | Dias de Abandono, Mão Morta | No Compasso da Vida, Elza Soares | Tristeza dos Dois, Salvador Sobral | Tristeza, Josh | Silêncio, Slow J
O Vício dos Livros II, Afonso Cruz
O universo dos livros é infinito. Embora possamos retomar assuntos já abordados, há sempre um novo prisma de onde podemos olhar, até porque amadurecemos ideias e a capacidade para interpretar detalhes - e alterar a nossa perceção sobre certos tópicos. Por isso, tendo em conta que Afonso Cruz é exímio na arte de escrever, achei precioso que trouxesse um segundo volume destas paixões que nos agregam enquanto leitores.
O Vício dos Livros II tem, para mim, uma funcionalidade dupla: por um lado, evidencia o processo criativo de nomes que vamos reconhecendo (mesmo ser os termos lido), os seus preciosismos e as visões que os distinguem no meio literário e, por outro, é uma fascinante carta de amor às palavras, ao livro enquanto objeto, ao prazer que é abri-lo e mergulhar numa infinidade de possibilidades, de dar um salto de fé no desconhecido.
O cruzamento de memórias, curiosidades, peripécias históricas, ideias e algum humor escancara sucessivas janelas para que possamos debater os mais distintos temas, que florescem neste vício que partilhamos com o autor. Incluindo, também, ilustrações, percebemos que existe, aqui, um diálogo intencional entre a parte visual e o texto, ao mesmo tempo que nos mostra que o ato de ler pode ser sempre mais profundo, que pode ter particularidades e camadas distintas para cada leitor - e todas elas válidas.
O primeiro volume já me tinha conquistado e este não ficou atrás. Honestamente, não vos sei dizer qual apreciei mais, uma vez que creio que se complementam na perfeição e que transmitem a sensação de haver continuidade. Ler Ou Não Ler, Eis a Questão, Um Livro Não, Linhas Vermelhas: Outra Vez a História da Separação do Autor e da Obra e Quer Queiramos, Quer Não, Somos Todos Poetas encaixam no grupo dos meus textos favoritos.
O Vício dos Livros II ensina, aguça a curiosidade e prova que é «possível compreender a vida através da literatura». É um livro precioso, no qual me senti sempre incluída, que me deixou a pensar na necessidade que temos de tornar a leitura mais apelativa, já que a gratificação não é imediata, na obra que deixa de ser do autor assim que é publicada, já que o leitor nasce e lhe atribui novos significados, na escrita enquanto manifesto de liberdade, no preconceito em relação a determinados ramos literários, na importância do silêncio e na solidão que parece ser imprescindível para os momentos de criação.
🎧 Banda Sonora: I Don’t Want To Set The World On Fire, The Ink Spots | O Caminho é o Poema, O Gajo & José Anjos | Vício, Jimmy P, Gson & Filipe Ref | Capitão Romance, Ornatos Violeta & Gordon Gano
[gira-discos]
As músicas das últimas semanas: Agradecido, Plutónio | Tiques de Rico, Os Quatro e Meia & Miguel Araújo | Dava a Volta ao Mundo, S. Pedro & Carolina de Deus | Se Fosse Fácil, João Só | ganhei, Jüra | 20 . 25 . Resumidamente, Noiserv | afraidofsomethingreal, Mariana Tereso | Tanta Pena, André ViaMonte & Janeiro | Hipnotizado, Os Pontos Negros | 7+7=14, Picas | Em Frente, F.Milly | Outra Realidade, Dengaz & Mari Segura | Wowó, Carla Prata | Mochila, Carl Karlsson | Sentido, Luís Braz Teixeira & Sara Megre.
Os álbuns que têm estado a tocar: Violetta, Lhast | Ana Márcia, Márcia.
[caixa mágica]
Ruído
O riso pode tocar em aspetos que nos fragilizam, porque ficamos vulneráveis perante os outros, porque isso significa que encontraram em nós - nas nossas crenças e/ou nos nossos comportamentos - detalhes com a capacidade de serem risíveis. Por isso é que o humor parece sempre sujeito a uma vistoria minuciosa, para que nunca ultrapasse os limites que julgamos intocáveis, mas se nós não nos pudermos rir e, desta maneira, desconstruir assimetrias, distâncias ridículas e preconceitos, o que é que nos resta?
A série Ruído transborda de subtilezas, mesmo quando parece que as rábulas não são mais do que representações parvas, com o propósito de entreter. Potenciar esse lado de lazer é ótimo e acredito mesmo que nos faz falta, porque talvez nem tudo tenha de ser educativo e profundo, mas acho genial quando, através da comédia, da piada mais ou menos fácil, existem cenários que ficam a ecoar e que nos obrigam a pensar neles.
Para além do argumento, adorei ver alguns atores em registos diferentes, como o caso do Gonçalo Waddington e do Albano Jerónimo, porque foi uma maneira de reforçar a versatilidade do seu talento - pessoalmente, acho que o Gonçalo Waddington tem um ritmo de comédia excelente. Ademais, sinto que a série foi crescendo de episódio para episódio e que terminou de uma forma brilhante, atando todas as pontas anteriores.
Não quero pormenorizar excessivamente para não condicionar a experiência de quem ainda não viu Ruído, mas permitam-me só listar o que me ficou de cada episódio:
episódio um: Portugalid[Arte] #93
episódio dois: a falta de representatividade, a falácia das aparências, o fascínio pela tragédia e a necessidade que algumas pessoas têm de querer agradar todos;
episódio três: os picos de energia de quem trabalha numa rádio e os filhos que são usados para ganhar dinheiro;
episódio quatro: os clichés que repetimos em momentos dolorosos (e que me deixou a pensar se são uma formalidade ou um mecanismo de defesa), a verdade e o rigor que se opõem ao que vende, ao clickbait;
episódio cinco: será que há somente um grupo de resistência ou haverá mais pessoas a tentarem ir contra a corrente?
episódio seis: a nossa obsessão pelos números e pelo abismo, a ausência de filtros sociais;
episódio sete: como é que o nada nos assusta tanto? Como é que o riso nos preocupa? Além disso, persiste a noção de que a liberdade dá trabalho, mas que, por mais que tentem, não é possível eliminar uma ideia;
episódio oito: os limites do humor, os ses que condicionam, o machismo e a coragem necessária para ir e para ficar.
Lume
Os incêndios florestais são uma realidade dolorosa e recorrente. Por mais esforços que sejam implementados, parece que o plano de prevenção nunca é suficiente para mudar a narrativa e, infelizmente, a história acaba sempre por se repetir, vitimando inocentes.
Lume é a mais recente aposta audiovisual da RTP, sendo «um thriller jornalístico que mergulha na origem dos incêndios que todos os anos assolam a zona fronteiriça entre a Galiza e Portugal». A catástrofe ocorre numa aldeia limítrofe da Raia Seca e atrai a atenção dos media, com particular destaque para Lucía Pereira, natural da Galiza, que trabalha num jornal lisboeta. Ao cobrir o incêndio, rapidamente compreendemos que há algo mais profundo na sua investigação, que há uma ligação ao passado e a outro incêndio que deflagrou 30 anos antes. Estarão relacionados ou é uma coincidência?
É desolador assistir à destruição, à fuga, à sensação de perda, à tentativa de salvar o máximo possível, sobretudo os animais, e à incerteza de um regresso, porque tanto os profissionais como a comunidade não conseguem prever o desfecho, a dimensão desta tragédia que escala descontrolada. Não obstante, é angustiante perceber que a origem dos incêndios pode ligar-se a uma teia de crimes centrados nas energias renováveis.
Num argumento que cresce nos silêncios, que nos inquieta por aquilo que não é dito, existem coisas muito estranhas a acontecer e que nos fazem acreditar que o regresso de Lucía a Seara pode ser um problema, mas para quem? Contando com a ajuda de um polícia e de fontes anónimas que lhe fazem chegar pistas importantes para o seu caso, terá de ultrapassar vários obstáculos e incomodar pessoas influentes, isto enquanto sente na pele o julgamento da população que não esquece a história da sua família.
Lume opõe a transparência à confidencialidade e deixa-nos a pensar até onde é que as pessoas estão dispostas a ir para descobrirem a verdade ou para esconderem segredos.
Nada Disto é Por Acaso
O Carta de Alforria foi um dos melhores álbuns de 2024 e, no início de 2025, Plutonio fez história ao esgotar duas datas na Meo Arena. No documentário Nada Disto é Por Acaso, reuniu esses dois mundos e colocou à conversa pessoas que nem sempre têm palco, embora façam parte de todo o processo, para compreendermos a sua dimensão.
Violetta Film
O mais recente álbum do Lhast escalou rápido para um dos meus favoritos do ano e de vida. E achei brilhante que lançasse um filme completo do Violetta, porque nos ajuda a ter uma noção mais clara do ambiente, da mensagem e do contexto. Desfrutem.
[biblioteca sonora]
Os episódios que mais me marcaram ao longo destas duas semanas e um podcast que me deixou muito feliz por ter saído da gaveta: refiro-me, claro, ao da Lénia Rufino.
[bilheteira]
Lançamento de Outonecer
Júlio Machado Vaz tem livro novo e fará duas apresentações durante esta semana: dia 9 de julho (quarta-feira), às 19h30, estará no Teatro Rivoli, no Porto (os bilhetes são gratuitos e podem ser levantados na bilheteira do teatro ou reservados online no dia do evento a partir das 11h); no dia 11 de julho (sexta-feira), estará na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, em Braga, às 18h30.
Concerto Samuel Úria
O artista sobe ao palco do Teatro Municipal de Bragança, dia 9 de julho, pelas 21h. Os bilhetes têm o custo unitário de 7€.
Palavras São Raízes
Marta Pais Oliveira tem encontro marcado com Madalena Sá Fernandes, dia 10 de julho (quinta-feira), na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Gaia, às 21h30, para conversarem sobre autoficção, a arte da crónica, paixões, coragem, liberdade, entre tantos outros temas despertados pelos livros. A entrada é livre.
Festas da Maia: Dillaz
O rapper português marca presenta nas Festas da Maia no dia 11 de julho, às 22h30. O concerto tem lugar no Parque Central da Maia e a entrada é livre.
Crimes de Lisboa
Este passeio particular, centrado em acontecimentos «sangrentos e assustadores», que «influenciaram o percurso da história da capital», realiza-se no centro da cidade e tem a duração de 1h30, sendo o ponto de encontro no Arco da Rua Augusta. Existe uma sessão no dia 11 de julho e outra no dia 12 (sábado): ambas começam às 21h30 e os bilhetes têm o custo unitário de 15€.
«Eu não sei como é que nós ainda conseguimos fazer rir as pessoas, se andamos sempre com medo. Eu não consigo desistir. Tenho medo do que essa decisão pode fazer cá dentro» [in Ruído]