Portugalid[Arte] #99
uma viagem com Sónia Balacó, Hugo Gonçalves, as músicas da semana, Rabo de Peixe, Faro, As Vossas Recomendações, dois episódios de podcast, David Fonseca & GNR e sugestões culturais
[estante cápsula]
Rosa, Sónia Balacó
O término de Constelação deixou-me com a certeza de que não demoraria a regressar à poesia de Sónia Balacó: não só porque já tinha o seu segundo livro à espera na estante, mas também porque fiquei presa à simplicidade, ao despojo, à proximidade dos versos.
Rosa compila textos escritos entre os 18 e os 30 anos, numa espécie de «despedida da juventude e [de] grito de liberdade». Contrariamente à obra que antecede esta, há mais entradas em prosa e achei curioso que a autora tenha explicado, em entrevista, que o livro se chama Rosa «porque era para ser prosa e o P caiu». Creio que esta imagem é um reflexo da atenção atribuída aos detalhes - e à poesia presente nos acasos da vida.
Outro aspeto que me deslumbrou - e que vi ser corroborado na mesma entrevista - foi o facto de encontrarmos expressões rasuradas, quase como se estivesse a censurá-las. A particularidade dessa decisão é que nunca o chega a fazer em pleno, visto que somos capazes de ler o que estava escrito. A poeta deu-lhes forma, através das palavras, numa altura em que descobria o mundo, não aos 40, quando as editou, por isso, há coisas nas quais já não se revê. Não obstante, esses universos coexistem e torna-se fascinante ver como os aceita e como permite que exista um diálogo entre o passado e o presente.
Rosa é uma metamorfose que nos mostra a importância de nos libertarmos, de sermos quem somos, de termos pensamentos crítico, ao mesmo tempo que eleva a palavra, a necessidade de não nos encolhermos e a memória. Ao escrever sobre coisas que nem sabia que sentia, reforça a confiança nas suas diferentes versões, uma consequência do seu crescimento emocional. Rosa é terno, é sensível, é muito humano e, por essa razão, existem versos em que nos estamos a observar ao espelho, completamente vulneráveis.
🎧 Banda Sonora: Rosas, Kappa Jota & MUN | As Minhas Coisas Favoritas, Rita Redshoes | Na Minha Cabeça, Rita Rocha | O Teu Lugar, Márcia | de novo, Lour
Sintra, Hugo Gonçalves
A admiração pelo Hugo Gonçalves é cada vez mais notória, porque acho fascinante a forma como constrói as narrativas, os diálogos e o crescimento das personagens. Além disso, acredito mesmo que a sua escrita brilha ainda mais no plano da não ficção - sem demérito para os romances. Por isso, fui descobrir uma cidade através do seu olhar.
Sintra é o quinto volume da Coleção Portugal, na qual vários escritores portugueses e um fotógrafo de património, Libório Manuel Silva, se unem para mergulhar na nossa geografia, mantendo «o mesmo horizonte para a ficção e a realidade». Neste livro, o autor parte numa aventura simples, mas a transbordar de significado, com o filho e esse é, para mim, o melhor género de literatura de viagens, porque os intervenientes não se excluem do processo. É maravilhoso conhecermos pontos turísticos, sabermos histórias antigas e criarmos um roteiro gastronómico, mas considero bastante especial quando uma paragem desperta memórias. Eu nunca as sentirei com propriedade, mas é como se tivesse acesso a trilhos escondidos, que não aparecem num guia comum.
No conforto da minha casa, dei por mim a concordar com a ideia de sairmos à procura de algo e de regressarmos com aquilo que encontramos. Quando iniciei a leitura, ia à procura de um estreitar de laços - só não sabia a natureza - e voltei à realidade a sentir que o Hugo Gonçalves é exímio na arte de comover, de entrelaçar elos que parecem autónomos, de fazer dos lugares uma ponte para a nossa história. Não conheço Sintra tão a fundo, mas senti-me transportada para algumas trajetórias e, sobretudo, senti-me a abrir um álbum de família, consciente de que certos momentos não se repetem.
Feliz ou infelizmente, não posso levantar assim tanto o véu acerca desta obra, porque corro o risco de revelar em demasia. Ainda assim, não podia deixar de destacar as reflexões sobre família e parentalidade, sobre podermos ser diferentes pessoas ao longo da nossa vida, nos mais diversos contextos, e sobre aquilo que os nossos já não chegarão a saber. Há vazios impossíveis de preencher, mas nunca os esquecemos.
Sintra é delicado, generoso e estabelece uma travessia entre o passado e o presente. Partindo de um local físico que qualquer um pode visitar, explorar, chegamos a um espaço íntimo que confere maior simbolismo à paisagem que nos envolve. E acho curioso que, mesmo sem existir essa intenção, dialogue tão bem com Filho do Pai.
🎧 Banda Sonora: Linha de Sintra, Bárbara Tinoco | Conto de Fadas de Sintra a Lisboa, Os Pontos Negros | Sintra Zoo, Bispo | My Father’s House, Bruce Springsteen
[gira-discos]
As músicas da semana: Aura (Jimmy P), Saudade (Gama WNTD), Em Vez de o Mundo Acabar (Márcia), Enquanto Voas II (Ana Mariano), Assim Não Dá - Acústico Hoodie Sessions (João Pequeno) e Time Machine (Fingertips).
[caixa mágica]
Rabo de Peixe
O fenómeno Rabo de Peixe não me foi indiferente, nem tinha como, só que, na altura, ter uma subscrição da Netflix não era uma prioridade e, portanto, adiei a descoberta da série. Mais de dois anos depois, rumei ficcionalmente aos Açores para colmatar o atraso e ficar a conhecer as sombras de uma localidade onde nada parece acontecer.
Um veleiro carregado de cocaína, com dois mafiosos italianos a bordo, naufraga neste arquipélago no meio do Oceano Atlântico e a história desenvolve-se a partir daqui, até porque a droga surge como uma forma arriscada, mas rápida de ganhar dinheiro e de mudar de vida, tendo em conta que a população subsiste num cenário de pobreza, em alguns casos extrema. Eduardo, Rafael, Sílvia e Carlinhos serão os protagonistas desta tentativa de alcançar sonhos impossíveis e, no fundo, de ter uma perspetiva de futuro.
Isolados de tudo, presos a uma rotina sufocante, trabalhavam com o intuito de sair de Rabo de Peixe, acalentando o sonho americano. Depois de meia tonelada de cocaína dar à costa, abre-se aqui um precedente para também explorar algo que me interessa sempre: a influência que o lugar onde nascemos pode exercer no nosso destino. Acho que, acima de qualquer intenção mais ou menos legal, todas estas pessoas procuraram quebrar a corrente e escrever um desfecho diferente para as suas vidas. O problema é que ninguém passa por uma experiência desta dimensão sem sofrer consequências.
Os protagonistas eram pequenos peixes num mar imenso, que lhes exigia um tipo de jogo que não estavam habituados a jogar. Ainda assim, foram-se movimentando com mestria e inteligência, mesmo quando as emoções lhes toldavam a racionalidade. E um dos aspetos que mais me fascinou, para além de todo o contexto do narcotráfico, foi mesmo a relação de amizade que nunca perderam. Aliás, sinto que essa é uma das valências mais poderosas da série, não só porque humaniza o ambiente, mas também porque quebra a tendência subjacente das relações por conveniência tão associadas a este tipo de negócios obscuros. Eles estavam juntos no melhor e no pior, sem reservas.
Houve cenas que me parecem um pouco céleres e a necessitar de mais contexto para não perderem credibilidade. Não obstante, adorei como, no meio de tanta dor, trauma e descrença, pautaram o argumento com situações e diálogos cómicos, o que calibrou a energia da narrativa e a aproximou da vida fora dos ecrãs. Nem tudo é luz, nem tudo é tempestade, os nossos dias vão-se sucedendo num ponto intermédio, numa tentativa de manter essas duas metades equilibradas. Portanto, em nenhum momento senti uma visão paternalista. Senti, sim, a vontade de mostrar a pureza do lugar, das suas pessoas e a reação genuína «de um rapaz comum a quem aconteceu algo de extraordinário».
Vibrei muito ao longo dos sete episódios, comovi-me, fiquei surpreendida com certas decisões e revoltei-me na mesma medida. Porque há alturas em que parece que nada é suficiente, que não têm um segundo de sossego, que, inclusive, não podem relaxar, porque a vida das personagens está em perigo constante. Honestamente, queria que eles tivessem um pouco mais de sorte, que não sentissem o impacto das diferenças e do quanto o futuro é desproporcional. Há assimetrias sociais tão palpáveis que não podemos sentir outra coisa a não ser injustiça. Por tudo isto, dei por mim a refletir sobre o facto de nem sempre conhecermos quem nos rodeia, sobre a necessidade de não olhar a meios para atingir os fins, sobre tornarmo-nos invisíveis aos olhos de todos e, sobretudo, sobre o facto de não «serem apenas os degenerados a consumir».
Num cenário paralelo, pensei muito sobre vulnerabilidade, abandono e impunidade. Pensei muito sobre como o amor nos dá alento, sobre como nem sempre precisamos de soluções, só que alguém nos ouça e abrace os nossos medos, as nossas inquietações. Esta série agrega uma série de temas atuais e pertinentes e, por isso, entusiasma-nos.
Inspirada em factos verídicos, Rabo de Peixe «lembra cicatrizes», porém, acredito que vai para além do estigma: esta «vila é uma das mais pobres do país e da Europa», mas não é só isso, não é só aquele incidente. As memórias pesam, há problemas que ainda hoje se manifestam em várias famílias, porque as feridas são permanentes, mas a série talvez venha aligeirar o ambiente e reduzir os preconceitos, uma vez que também nos mostra a importância de sabermos quem somos ou quem não queremos ser. Embora ninguém saia ileso - fisicamente ou de consciência - preciso da segunda temporada.
Faro
Um Fundo Imobiliário pretende comprar toda a ilha de Faro para construir um resort de luxo. Problema: Zé Maria, pescador local, opõe-se e outros habitantes apoiam-no, o que desencadeia um conflito «entre interesses imobiliários e a preservação ambiental».
A nova aposta televisiva da RTP mostra-nos, então, duas visões do mesmo lugar: uma motivada pelo dinheiro, pela noção de riqueza, outra centrada nas raízes, nos reais interesses da comunidade. A unir estes pólos temos Abel, um advogado de renome que, a julgar pelo primeiro episódio, será um impulsionador de consciência: não no sentido de dar lições de moral, mas no sentido de nos fazer refletir sobre as nossas incoerências. Por mais que nos movamos pelos valores certos, há circunstâncias que nos colocam à prova, evidenciando fragilidades. Quando prejudicam aqueles que nos são próximos, sentimo-nos no limbo, a oscilar sempre entre aquilo que pesará mais.
Em simultâneo, há um crime para solucionar, lidamos com saudades e conhecemos um clube de sadomasoquismo que pode ou não servir como fachada para algo maior; há um foco na saúde mental e na emigração, sobretudo em relação ao peso emocional.
Faro move-se num mundo de sedução, propostas irrecusáveis, pressões e ameaças. Não sei para onde escalará, mas já tenho várias questões que espero ver respondidas com o desenrolar dos acontecimentos. Ao recuarmos 27 dias no tempo, tentamos unir as pontas soltas deste enredo intrigante e, talvez, pautado por muitas áreas cinzentas.
[gavetas]
As Vossas Recomendações
A Diana Fonseca recomendou o livro Projeto Delete, da Helena Nunes.
[biblioteca sonora]
A compilação desta semana é breve, no entanto, combina duas conversas que me acrescentaram imenso. E, apesar de o segundo episódio se centrar numa vertente mais técnica/factual, digamos assim, acho mesmo que conseguem ter pontos transversais.
[cartaz]
Solstício - Festival de Música: David Fonseca & GNR
A Maia quis celebrar o dia mais longo do ano e assinalar a chegada do verão com «um Solstício de boa música portuguesa». E, para isso, convidou o David Fonseca e os GNR.


O primeiro artista a subir a palco foi David Fonseca e a abertura do concerto é sempre icónica. É apenas a segunda vez que o vejo ao vivo, mas continuo fascinada com a sua energia, com a forma como nos envolve no espetáculo e como quase nos leva para uma dimensão paralela. Ficamos inebriados com o seu talento e com a narrativa visual.
Sinto que é impossível não querermos dançar em todas as canções, mesmo nas que têm um traço mais emotivo, portanto, vamos explorando diferentes registos e, claro, diferentes sensações. Sei que ficaria muito mais tempo a ouvi-lo e a acompanhá-lo nesta viagem que ainda incluiu uma homenagem aos Humanos e aos Silence 4.


Os GNR são uma das bandas da minha vida e fazem parte de vários momentos do meu crescimento. Já não estava num concerto deles há alguns anos, porém, é incrível como a melodia ecoa e tudo se torna familiar de imediato. Há um toque que é apenas deles.
Por momentos, confesso, temi que Ana Lee tivesse desaparecido do reportório, mas o meu coração pôde descansar. Além disso, passe o tempo que passar, ouvir a Pronúncia do Norte ao vivo terá sempre um significado muito mais especial. Não obstante, seja qual for a música que estejam a tocar, é fabuloso observar o Reininho e sentir que ele está a proporcionar uma experiência transcendente, porque lhe pulsa por dentro.
O verão chegou bem embalado por esta magia musical e dois concertos inesquecíveis.
[bilheteira]
Freakshow Labs
As Freakshow Labs têm duas sessões agendadas: dia 24 de junho (terça-feira), no Auditório Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro (Lisboa), às 21h30. Dia 25 de junho (quarta-feira), no Ferro Bar (Porto), às 21h. Os bilhetes custam 10€ em ambas.
Prémio José Afonso 2025: Emmy Curl
A artista sobe ao palco do Recreios da Amadora, dia 27 de junho (sexta-feira), às 21h. Os bilhetes têm o custo de 10€.
À Primeira Vista
O monólogo interpretado por Margarida Vila-Nova chega à sala do Teatro Aveirense, dia 27 de junho, às 21h30. Os bilhetes têm o custo de 10€.
Cinema Português nas Ilhas
A Bairro Etéreo apresenta o ciclo Cinema Português nas Ilhas, no qual não só se «poderá ver filmes portugueses, como também discuti-los com outros cinéfilos, realizadores e responsáveis técnicos e artísticos». No dia 28 de junho (sábado), há dois filmes a serem exibidos/discutidos no Centro Cultural John dos Passos: A Sibila, às 17h, e A Noiva, às 19h30. Os bilhetes têm o custo de 5€ em ambas as sessões.
Concerto Lena D’Água
A artista sobe ao palco do Fórum Cultural José Manuel Figueiredo (Setúbal), no dia 28 de junho, às 21h30. Os bilhetes têm o custo de 12,73€.
Véspera, Clã
O grupo português atua no Teatro Cinema de Fafe, no dia 28 de junho, às 21h30. O valor dos bilhetes varia entre os 10€ e os 20€.
«A vida é um empréstimo, estamos cá só de passagem»
[in Rabo de Peixe]