Portugalid[Arte] #80
uma viagem com Bruno Nogueira, Ana Bárbara Pedrosa, as músicas da semana, Lugar 54, Inquieta, de Gisela João, por Sofia Costa Lima, quatro conversas que gostei de ouvir e sugestões culturais
[estante cápsula]
Dores Crónicas, Bruno Nogueira
As crónicas do Bruno Nogueira continuam a sair na Sábado, no entanto, com exceção de textos pontuais, tenho evitado lê-las na revista, porque espero sempre que sejam compiladas num livro. Qualquer dia, reconheço, esta gestão é capaz de me correr mal, mas aproveitei a maré que se alinha e foi assim que cheguei ao seu segundo exemplar.
Dores Crónicas, parece-me, é uma viagem muito mais intimista pelos assuntos que o inquietam, pelos pensamentos que se reproduzem, repetidamente, em surdina e vão pairando sobre o seu quotidiano. Por esse motivo, notei um tom mais melancólico, por vezes, mais fatalista, concentrado naquilo que se perde com o tempo e com a ausência; ou, então, naquilo que povoa os cenários hipotéticos que construímos sem sabermos bem com que propósito. O Bruno Nogueira tem mais dez anos do que eu e é natural que as nossas visões do mundo se desencontrem em certos pontos, mas tenho sentido que, com o avançar da idade, tendo a olhar para algumas situações com nostalgia, quase como se lhes visse o fim (mesmo que não tenha capacidade para o adivinhar). Portanto, senti-me validada nos medos, nas irritações, na dificuldade em largar a mão.
Sou fascinada com o seu trabalho no humor, até porque cresci com essa referência, mas tenho descoberto uma camada ainda mais encantadora na escrita, talvez por ser tão humana e tão emocional - sem pender para a moralidade de quem acha que sabe tudo sobre a vida. E gosto mesmo que não tenha qualquer receio de demonstrar a sua vulnerabilidade e a tristeza que o habita em várias ocasiões. Acho que isso é fruto de um grande autoconhecimento, sem que se tenha passado a levar demasiado a sério.
Tenho várias frases destacadas, que ficaram a ecoar cá dentro e às quais quererei regressar, mas não posso deixar de destacar as cinco crónicas que mais me fizeram sentido: Melhor Assim, A Memória e a Criação, As Janelas Que Contam Histórias, Uma Família e Uma Escadaria e O Porto é Um País - esta última, surpreendendo um total de zero pessoas, é a favorita das favoritas, não só por ser sobre a cidade do meu coração, mas por todo o amor e consideração espelhados nas suas palavras sempre certeiras.
Dores Crónicas é sobre o tempo, a(s) memória(s) e o que nos pesa. Escrito num misto de leveza e intensidade, com sensibilidade e pertinência, acho que nos mostra que todos temos as nossas dores e que refletir sobre cada uma delas pode levar-nos a um sítio bom ou, pelo menos, mais esclarecido. Além disso, em simbiose com as ilustrações lindíssimas de Juan Cavia, acredito que nos mostra que nunca estaremos sozinhos.
🎧 Banda Sonora: Rosa à Janela, Baile Popular | Tsunami, Richie Campbell & Gson | Do Avesso, Inês Marques Lucas | O Primeiro Dia, Sérgio Godinho | Margens do Douro, Mundo Segundo, Maze & Macaia
Palavra do Senhor, Ana Bárbara Pedrosa
A voz de Caetano Veloso, em Cajuína, questiona-nos sobre «a que será que se destina» esta ideia de existirmos. Talvez não haja uma resposta fechada, única, contudo, Ana Bárbara Pedrosa fez deste verso um mote para explorar a criação e, acima de tudo, para nos trazer uma versão diferente daquilo que encontramos escrito na Bíblia.
Palavra do Senhor remete-nos para uma aclamação litúrgica, permitindo-nos ouvir a voz do Criador. Neste caso, Deus narrar-nos-á os acontecimentos desde o princípio do mundo, sempre de uma perspetiva muito humana, para que reflitamos acerca do que foi sendo distorcido ao longo do tempo, porque o Homem leu, mas entendeu tudo mal.
A premissa intrigou-me de imediato, se calhar, por me sentir cada vez mais afastada da religião e das versões que se sobrepõem e contradizem. Continuo a ter as minhas crenças, mas sei que coloco mais coisas em causa, que questiono mais, que me vou tornando mais cética em relação a alguns propósitos. Não fui batizada por escolha pessoal, mas andei na catequese até fazer o crisma por vontade própria, fui acólita e andei no coro da Igreja pelos mesmos motivos. Olhando para esse trajeto, creio que precisei de passar por cada uma dessas etapas para chegar a este ponto: ao ponto de ser capaz de não aceitar tudo o que é invocado, somente por estar num livro sagrado.
Ana Bárbara Pedrosa não menospreza, ainda assim, a religião católica, traz-nos é um olhar crítico sobre a mesma e sinto que esse é um dos pontos fortes da narrativa, não só porque nos desarma com a sua abordagem em relação à ação d’ O Altíssimo, mas também porque nos obriga a analisar o nosso comportamento (enquanto crentes ou não), uma vez que tendemos a inverter e distorcer as mensagens consoante as nossas necessidades. E, por causa disso, fiquei a pensar no quanto é fácil escolhermos um bode expiatório, desculpabilizando-nos com o facto de agirmos sob a sua influência.
Imaginar Deus, em nome próprio, como um comum mortal, a vir esclarecer boatos, mal-entendidos e motivações dúbias, admito, teve a sua graça, muito por causa da escrita da autora. De um modo ousado, colocou-o ao nosso nível, com as mesmas inquietações, com rasgos de desapontamento, com obsessões, com emoções à flor da pele, com paixões, com sonhos, com um traço de emotividade que mais parece uma montanha russa a oscilar. Achei isso original e motivou-me para avançar na leitura, mas, por outro lado, sinto que este livro não ficará comigo, porque pareceu-me que a concretização acabou por esmorecer, tornando a narrativa um pouco repetitiva.
Palavra do Senhor explora limites, a desilusão agregada à falta de compreensão e erros. Dividido em duas partes, queria que a proposta tivesse mais espaço para amadurecer.
🎧 Banda Sonora: Eva, Ivete Sangalo | Cajuína, Caetano Veloso | Na Escola, Os Quatro e Meia
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Já Não Há Pardais no Céu (Bandidos do Cante), Milionário (PTM & Plutonio), Chuva - Acoustic (Diogo Piçarra) e Vai Custar (F.Milly).
O gira-discos tem estado a tocar: Sozinha e Mal Acompanhada (Pikika), Vai-se Andando? (Edmundo Inácio), Efeito Submarino (João Couto) e Inquieta (Gisela João).
[caixa mágica]
Lugar 54
Os parques de estacionamento são espaços funcionais, que cumprem um propósito muito específico. Mas já pararam para pensar na quantidade de histórias que podem esconder, sem que nunca sejamos capazes de as desvendar? Eu nunca tinha feito esse exercício de análise, até que assisti à mais recente produção nacional da RTP Lab.
Lugar 54, composto por cinco episódios, parte do mesmo cenário para nos mostrar a pluralidade de narrativas que conseguem passar pelos mesmos metros quadrados, ao longo do dia. Bernardo Lopes e Francisco Mira Godinho procuraram criar um lugar comum, onde seria fácil rever-nos, porque existem pedaços destas histórias que, de facto, podiam pertencer-nos. Assim, do drama à comédia, e com um toque de terror pelo meio, acompanhamos momentos distintos, que levantam inúmeras perguntas.
Não quero entrar em detalhes, para não correr o risco de relevar demasiado sobre os episódios, mas sei que fiquei com outra perspetiva dos sítios por onde passo, daquilo que guardam sem que esses fragmentos nos toquem, daquilo que vai acontecendo em simultâneo sem que sejamos capazes de marcar a trajetória e viver as suas nuances. Aliás, quando voltar a um parque de estacionamento, sei que darei por mim a pensar na quantidade de realidades que se cruzaram ali e que acabaram por seguir caminho.
Neste lugar de passagem, um carro avança, deixando as marcações vagas, e outro chega para o ocupar, sem fazer ideia «das emoções que nele habitaram», do medo, das promessas que se quebraram, do desencanto, dos diálogos intensos, dos pensamentos, da esperança e/ou da carência de futuro. As histórias sobrepõem-se, no entanto, são incontáveis, porque fora dali mais ninguém as conhece, ainda que possam estar a viver algo semelhante. E foi esta noção que mais me fascinou na série, porque é como se estivéssemos a assistir a um jogo de luzes e de sombras ou, então, a contar segredos.
Lugar 54 traz-nos planos de fuga, problemas com drogas, memórias que se esfumam, conversas inconsequentes, deslumbramento e crime. Não me senti impactada em todos os episódios da mesma forma, talvez por estar longe de algumas experiências, mas gostei bastante da humanidade que espelharam, da credibilidade das reações e do facto de deixarem perguntas em aberto, porque a verdade é que não permanecemos nos locais durante os mesmos períodos de tempo, portanto, há coisas que acabaremos por não descobrir. Essa janela entreaberta aguça a curiosidade para vermos mais.
[gavetas]
Inquieta, de Gisela João, por Sofia Costa Lima
No louceiro da sala da minha avó havia, meio escondido numa das portas, um prato que parecia ter mais peso do que todos os outros, embora eu o achasse leve. O prato nem me parecia assim tão especial. Era vermelho escuro e tinha três elementos, a amarelo: uma foice, um martelo e uma estrela. Honestamente, para quê guardar um prato assim? Já era bem adulta quando percebi de onde vinha o peso daquele prato e, acima de tudo, de onde vinha o peso herdado por anos que não vivi.
Não foi à toa que liberdade foi a palavra mais votada para Palavra do Ano de 2024. Os 50 anos do 25 de abril terão influenciado largamente, mas, mais do que isso, as constantes ameaças à liberdade individual e, por consequência, coletiva, um pouco por todo o mundo, têm lembrado que algo conquistado uma vez pode muito bem ter de ser reconquistado vezes e vezes sem fim. Se nos tirassem liberdades hoje, quem seriam os opositores do regime? Quem seriam as Marias, a Natália, o Zé Mário ou o Zeca? Haverá quem lhes queira lembrar o legado? Haverá quem queira continuar as suas lutas?
Só comecei a prestar atenção à música da Gisela João no início do ano passado (mea culpa, espero que me perdoes, Gisela!), embora sempre lhe tenha reconhecido irreverência, talento e profissionalismo. Ainda assim, não contava chegar ao início de fevereiro de 2025 a dizer que tenho quase a certeza de que é da Gisela João um dos álbuns que será álbum do ano para a música portuguesa.
Inquieta saiu no dia 7 de fevereiro e inclui versões de músicas de liberdade, de José Afonso a Paulo de Carvalho, de José Mário Branco à Capicua, com um toquezinho de Sérgio Godinho. A Gisela pegou em temas que falam de liberdade e tomou-os como seus, apropriando-se deles de tal forma que parecem ter sido feitos para ela os interpretar. Senti isso particularmente em Que Força é Essa, Amiga?, Inquietação e E Depois do Adeus. Arrisco até dizer que Que Força é Essa, Amiga? ganhou ainda mais impacto nesta versão.
“Quero deixar bem claro que a minha intenção com este disco é maior que a data em si, é maior que isso tudo, é lembrar as pessoas que a nossa Liberdade”, a liberdade “de cada um de nós”, impõe “cuidar da Liberdade” que “é nossa e do nosso vizinho”, que a Liberdade “tem um impacto de forma direta na vida e na liberdade das outras pessoas”. [Gisela João em entrevista à Agência Lusa]
Fascina-me como a cultura, sempre renegada pelos governos, é a primeira a ficar do lado da liberdade, da democracia, da igualdade. Mais do que nunca, parece-me necessário que a cultura esteja do lado da liberdade. Precisamos de ambas, precisamos muito de ambas. Aquilo que Inquieta me deu foi a resposta clara a uma pergunta que vi ser feita nos meses antes das Comemorações dos 50 anos do 25 de abril de 1974: ainda haverá em Portugal artistas capazes de música de intervenção, capazes de admitir, sem medos, que toda a arte é política? A resposta é mais clara do que nunca. Não será por acaso que, num mês, dois artistas da atualidade fizeram versões de Os Bravos, tema de José Afonso.
Inquieta traz-me um sossego muito peculiar. Pode haver quem não concorde, mas precisamos de vozes que se levantem pela liberdade, que cantem a liberdade. Precisamos de nos lembrar, todos os dias, que houve quem tenha lutado pela liberdade e que nos cabe continuar a luta. Obrigada por fazeres a tua parte, Gisela. Faremos a nossa também.
[biblioteca sonora]
É verdade que tenho quase um podcast para cada dia da semana e, quando não tenho, acrescento ou aproveito para pôr episódios em dia. Portanto, sem me distanciar muito da lista, mas trazendo uma novidade, partilho quatro conversas que gostei de ouvir.
[bilheteira]
Dê Uma Nova Casa aos Nossos Livros
O Museu Nacional Soares dos Reis, com o intuito de celebrar o Dia Internacional da Doação de Livros, está a promover uma campanha denominada Dê Uma Nova Casa aos Nossos Livros. Assim, de 11 a 16 de fevereiro (terça-feira a domingo), das 10h às 17h, podemos visitar gratuitamente o espaço onde decorre a campanha e acolher obras usadas, de uma vasta seleção, «sobretudo relacionadas com a arte e o património».
Nem Todas as Árvores Morrem de Pé
O romance de estreia de Luísa Sobral está em pré-lançamento, com entrega prevista a partir de dia 11 de fevereiro. Fiquem com uma breve descrição: «Emmi, que nasceu pouco antes de Hitler ascender ao poder na Alemanha, perde o pai na guerra e tem uma adolescência difícil, trabalhando desde muito cedo para ajudar em casa. É num bar aonde vai com os amigos depois do trabalho que conhece Markus, um homem de Berlim Leste que lhe escreve cartas maravilhosas e por quem se apaixona».
Fingertips: O Outro Lado da História
A banda sobe ao palco do Cine-Teatro Avenida (Castelo Branco), no dia 14 de fevereiro (sexta-feira), às 21h30. O bilhete tem o custo de 15€.
Escritoras do Meu País
O Clube das Mulheres Escritoras, em parceria com a Biblioteca Municipal de Beja, promove uma série de oito conversas «para divulgar e celebrar a escrita de autoras portuguesas». Assim, o ciclo Escritoras do Meu País arranca com Filipa Fonseca Silva e Vera dos Reis Valente, dia 15 de fevereiro (sábado), às 16h.
Vludo com Sam The Kid
Uma reunião que se concretiza num concerto, no Teatro Municipal de Bragança, no dia 15 de fevereiro, às 21h. O bilhete tem o custo de 6€.
Concerto Van Zee
O artista madeirense sobe ao palco do Coliseu do Porto Ageas, no dia 15 de fevereiro, às 21h30. Os bilhetes variam entre os 23€ e os 28€.
«Não me exijam/que diga/o que não digo/não queiram/que escreva/o meu avesso/não ordenem/que eu aceite/o que recuso/não esperem/que me cale/e obedeça»
[in Estranhezas, Maria Teresa Horta]
Fiquei curiosa com o Lugar 54 👀