Portugalid[Arte] #73
uma viagem com Filipa Fonseca Silva, Iris Bravo, Maria Isaac, Helena Magalhães e Susana Amaro Velho, as músicas da semana, As Vossas Recomendações, Os Quatro e Meia e duas sugestões culturais
[estante cápsula]
O Sono Delas, Filipa Fonseca Silva, Iris Bravo, Maria Isaac, Helena Magalhães e Susana Amaro Velho
A qualidade do nosso sono interfere com diversas dinâmicas da nossa vida, sendo condicionada por elas na mesma medida, mas sinto que, por um lado, nem sempre fazemos esse paralelismo e, por outro, que tendemos a desvalorizar o momento em que nos deitamos para dormir. E contra mim falo, uma vez que continuo a ser um pouco negligente com a rotina de sono. Portanto, consciente que não estaria a ler um livro técnico, quis aventurar-me numa obra focada nesta temática tão imprescindível.
Gatilhos: Luto, Saúde Mental
O Sono Delas é constituído por cinco contos, escritos por cinco autoras portuguesas, e cuja premissa passa por explorar doenças/perturbações do sono, de um ponto de vista feminino, porque permanecem tabu. Aliás, «continua a ser mais difícil o diagnóstico na mulher», já que existe um estigma e uma imagem de fragilidade muito vincada na sociedade, fruto, também, de ainda romantizarmos esta ideia de se dormir pouco.
Com a intenção de nos fazerem conversar abertamente sobre o assunto, alertando para as consequências a longo prazo, Filipa Fonseca Silva, Iris Bravo, Maria Isaac, Helena Magalhães e Susana Amaro Velho partiram de casos reais de uma consulta da Medicina do Sono para construírem uma narrativa que pode ser espelho de tantos nós. Sem querer entrar em detalhes, para não comprometer uma futura experiência de leitura, quero só fazer uma breve análise daquilo que senti em cada um dos textos.
Bom Dia, Meu Amor, de Filipa Fonseca Silva, conta-nos a história de Manuela. Completamente exausta, há um dia em que adormece... por tempo indefinido. Este conto foi, de longe, o meu favorito, uma vez que é cómico, é irónico e, talvez, o que apresenta a abordagem mais distinta. Acredito que evidencia bem as desigualdades parentais e o impacto da sobrecarga, que continua a pender para o mesmo lado.
A Solidão Nem Sempre Era o Lugar Mais Seguro no Qual Viver, de Helena Magalhães, apresenta-nos Maria Eduarda. Aos 13 anos, depois de uma festa entre amigas, recebeu uma alcunha que a marcou para o resto da vida, ao ponto de se resguardar de qualquer relação íntima. Sinto que este conto representa a vergonha de algo que nem sempre controlamos e que há circunstâncias que nos paralisam, desgastando-nos aos poucos. Nesta narrativa, gostei particularmente do sentido de humor mordaz da autora.
Torre de Névoa, de Íris Bravo, centra-se em Ana. Como não consegue descansar como seria suposto, acaba por sofrer lapsos de memória, sentindo uma das ramificações das insónias. Ainda que tenha sentido a escrita oscilante, o que mais me cativou no texto da autora foi mesmo o foco em algo que também sinto permanecer tabu: a menopausa.
Insónia, de Maria Isaac, permite-nos acompanhar Bia ao longo da sua insónia. Adorei a estrutura do texto: por um lado, porque torna a descrição mais fidedigna e, por outro, porque traça uma situação transversal a vários leitores, sobretudo, quando existe uma série de pensamentos intrusivos que contribuem para ficarmos despertos.
Um Átomo de Ar, de Susana Amaro Velho, é sobre Emília e o papel de um cuidador. Confrontada com o próprio envelhecimento e a demência do marido, são notórias as dúvidas existenciais que se apoderam da protagonista. Além disso, creio que o conto nos faz pensar na quantidade de vezes que nos sentimos um estorvo para os outros.
Transversal a todas estas histórias e protagonistas/famílias temos a necessidade de procurar ajuda profissional e o quanto é vital comunicarmos. No final, Susana Sousa, médica do sono, ainda partilha breves dicas para cuidarmos da nossa higiene do sono.
O Sono Delas é um espelho da desigualdade de género que se verifica, mas também é um trabalho de consciencialização para o facto de precisarmos de uma maior literacia nesta área, para cuidarmos melhor da nossa saúde. Teria sido interessante encontrar patologias diferentes, no entanto, acho que é um ótimo ponto de partida, mostrando-nos que a literatura pode construir pontes, até para nos ajudar a dormir sem culpas.
🎧 Música para acompanhar: Vejam Bem, José Afonso
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Mais (Matheus Paraizo), Põe-te na Minha Pele (João Só & Carolina de Deus) e Já Nem Sei (Afonso Rodrigues).
[caixa mágica]
Still 25 - Coliseu dos Recreios
O concerto do David Fonseca, no Coliseu do Porto, foi um programa de última hora, mas que rapidamente escalou para um dos meus momentos favoritos do ano. Por isso, quando soube que a RTP iria transmitir o concerto gravado no Coliseu dos Recreios, não podia perder a oportunidade de assistir e, assim, (re)viver esta viagem alucinante pelos seus 25 anos de carreira. E vibrei como se o estivesse a ouvir pela primeira vez.
O espetáculo está disponível na RTP Palco, aqui.
[gavetas]
As Vossas Recomendações
A Marisa Vitoriano recomenda Nem a Ponta do Mindinho, espetáculo de Inês Aires Pereira e Raquel Tillo, que se encontra disponível online.
[cartaz]
Os Quatro e Meia ao Vivo no Super Bock Arena
O bilhete estava guardado desde o meu aniversário, em abril, não só para que não o perdesse, mas também para que não acusasse o toque de uma espera um pouco longa. Como já tive oportunidade de partilhar, descobri Os Quatro e Meia por acaso, mas conquistaram-me logo pela sonoridade, pelo tom descontraído e pela humildade. E vê-los ao vivo é sempre um momento indescritível, por isso, não perderia este concerto.
A Super Bock Arena preparou-se para receber estes bons rapazes, duas noites seguidas, uma vez que escreveram uma carta ao Pai Natal a pedir para regressarem onde foram felizes. Em 2021, num cenário pandémico, deram dois concertos com «regras restritas e isolamento social». Porém, em 2024, tivemos direito a um «espetáculo sem limites».
Com um tom natalício a pairar na sala, transportaram-nos para um clássico da sétima arte, o Sozinho em Casa, que combina sempre bem com a época, só que numa versão à imagem da banda. A maneira como construíram a narrativa, interligando os distintos momentos do concerto, foi sublime e uma demonstração fidedigna do quanto é tudo pensado ao detalhe e, sobretudo, do quanto eles (equipa incluída) procuram potenciar diferentes estímulos, tornando o espetáculo o mais plural possível. Por mais que exista espaço para o improviso, sente-se que nada é por acaso e que vem de um lugar bom.
Os primeiros acordes fizeram-se ouvir e foi inacreditável a mudança de energia, os laços que se estreitaram, ainda que de um modo inconsciente, como se fossemos um só. Sei que soa a lugar comum escrevê-lo, visto que há algo de poético nesta imagem e, se calhar, uma pequena hiperbolização, no entanto, acredito mesmo naquilo que estou a partilhar, porque se sentiu a envolvência; porque, mesmo sem conhecer quem estava ao meu lado, foi fácil de perceber o fascínio e a felicidade por estarmos todos ali.
Eles fazem a festa em cima do palco, mas incluem-nos em cada fragmento. Por isso, não é possível ficarmos quietos enquanto as suas vozes preenchem vazios, enquanto os instrumentos musicais nos convidam a dançar e/ou as melodias nos permitem recordar pessoas e situações que contam a nossa história. Há uma parte da minha identidade introvertida que se anula, porque eles ajudam a que me esqueça do mundo exterior. Ali, existe apenas um propósito e eu não podia estar mais grata por o viver.
Faltam-me palavras para descrever a pele eriçada a ouvir Guarda a Tua Alma, Amanhã e A Terra Gira, por exemplo. Mas também não as tenho para conseguir expressar o quanto dancei com Sentir o Sol, P’ra Frente é que é Lisboa e Baile de São Simão. E se já estava apaixonada pelo tema Saudade, este concerto fez com que o sentimento se agigantasse. Acho que é, também, por esse motivo que gosto tanto de ir a concertos: porque há músicas que crescem ao vivo e nos despertam sensações novas. Acho que a canção que os junta ao Miguel Araújo é um desses casos extraordinários. Sublime!
Por falar em Miguel Araújo, estava com esperança que fosse um dos convidados e não me desiludiram. Ficaria horas a ouvi-los, atendendo a que, por um lado, os seus estilos combinam na perfeição e, por outro, nos proporcionam interpretações indescritíveis. O segundo convidado foi o inigualável Toy e permitam-me fazer duas observações: 1) escutar uma sala lotada a cantar És Tão Sensual não estava na minha lista de objetivos de 2024, mas fez-me a noite; 2) acho que ainda não damos o devido valor a António Ferrão, mas tem uma voz inacreditável e não existe qualquer rasgo de vedetismo na sua postura. Por último, mas não menos importante, tenho de destacar a Orquestra que os acompanhou em todos os momentos, contribuindo para um ambiente intimista.
No fundo, estiveram reunidas todas as condições para que este fosse um dos melhores concertos do ano e seria um título totalmente merecido. Bem sei que sou suspeita, contudo, há muito talento, muita dedicação e um cuidado particular. E, depois, não é apenas pela música, ainda que seja ela o elemento que nos une e alimenta cada pedaço de alma: é pela capacidade de comover, de entreter, sem se deslumbrarem e perderem a essência que lhes reconhecemos desde o início. Quem me dera recuar no tempo.
No final do concerto, com o coração a transbordar de orgulho, tive de ir comprar uma recordação: o vinil O Tempo Vai Esperar. E regressei a casa certa de que foi uma noite mágica, que não esquecerei - e de que preciso que os temas novos fiquem disponíveis nas plataformas digitais. Dissemos olá à solidão, mas nunca estivemos sozinhos.
Os Quatro e Meia, quando vocês rodam, o baile ganha mesmo outra cor!
[bilheteira]
Museu Imaginário da Europa e Outras Ideias
Livro de Gonçalo M. Tavares e Os Especialistas com entrega prevista a partir de 27 de dezembro (sexta-feira). Deixo-vos com uma breve sinopse: «Composto de cinco cadernos, cinco blocos distintos em tom e imagem, mas ligados nesse tecido que texto e projetos imaginários vão formando, este livro — Museu Imaginário da Europa e Outras Ideias — atravessa as ideias de espaço, arquitetura e fragmento, e o seu núcleo nasceu de uma investigação, que envolveu Os Espacialistas, com o fundo em Aveiro Capital Portuguesa da Cultura 2024».
João Salcedo Piano Solo
O pianista apresenta-se «sem rede, num concerto único e totalmente improvisado», no dia 27 de dezembro, na Sala Suggia da Casa da Música (Porto), às 21h. O preço dos bilhetes varia entre os 12€ e os 25€.
«Subi ao alto, à minha Torre esguia, feita de fumo, névoas e luar»
[in Torre de Névoa, Florbela Espanca]