Portugalid[Arte] #70
uma viagem com Catarina Gomes, Ana Pessoa & Mariana Malhão, as músicas da semana, Irreversível, Prisma, O Elevador, Readers Wrapped, três episódios de podcast e sugestões culturais
[estante cápsula]
Furriel Não é Nome de Pai, Catarina Gomes
O livro Coisas de Loucos foi um dos que mais me marcou: quer pela escrita da autora, quer pela forma como partiu de objetos perdidos para traçar o retrato de um lugar, de pessoas anónimas e de uma época. Por esse motivo, estava desejosa de me reencontrar com Catarina Gomes e finalmente consegui alinhar-me para descobrir outra obra sua.
Gatilhos: Referência a Violência, Violação, Morte e Aborto
Furriel Não é Nome de Pai conta-nos a história dos «Filhos do Vento»: os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial. Considerado, pela autora, como um livro de pós-reportagem, uma vez que surgiu após as peças que fez para o Público, quebra o silêncio sobre esta realidade pouco visível, mas que deixou marcas profundas.
Na tentativa de compreender o sucedido, Catarina Gomes foi até à Guiné-Bissau, em 2013, «levando na mala um dos maiores tabus» da sociedade portuguesa e mostrando-nos que estas crianças foram rotuladas como filhas do inimigo, o que as fez sofrer represálias constantes e permanecer segregadas, privadas de uma parte crucial da sua identidade. É fácil procurarmos por culpados, e a verdade é que eles existem, mas a responsabilidade não se encerra nestes homens (nem todos pais na designação exata do termo): não só porque alguns voltaram para Portugal sem saberem que deixaram descendência, mas também porque o próprio Estado português «nunca fez um esforço para conhecer a dimensão» da situação e para lhes garantir direitos. Assim, estas crianças cresceram a tentar encaixar peças onde só encontravam silêncio e vazios.
Todas as histórias apresentam um denominador comum, por isso, sabemos que estes nomes e estes rostos, que não vemos, mas imaginamos, poderiam ser outros; por isso, sabemos que todos sentiram na pele a discriminação pela cor da pele e o seu futuro hipotecado. Não que lhes tenha faltado colo e amor, não que as mães e os padrastos lhes tenham falhado com o essencial, mas faltou-lhes a verdade e a possibilidade de serem aceites. E é desolador perceber que toda a gente à nossa volta tem noção do que aconteceu menos nós. Quer queiramos, quer não, isso também molda o nosso caráter.
Sinto que fui avançando na leitura com o coração nas mãos, porque a esperança dá lugar à revolta, porque o humor camufla a tristeza e porque existem perguntas que continuam sem resposta. No meio de inúmeras frases impactantes, permitam-me transcrever uma que não me sai do pensamento, já que me parece uma prova fiel do quanto estas vidas ficaram condicionadas: «Nunca namorei com uma pessoa clara, tinha medo que fosse filha do meu pai». Foi impossível ficar indiferente a esta imagem.
Furriel Não é Nome de Pai é, acima de tudo, um trabalho de empatia e de dignidade fabuloso. Embora não seja possível anular o passado, reverter o que viveram, a autora assumiu a missão de tentar unir estas famílias e, sem julgar escolhas, também não escondeu o desalento e a frustração que sentiu durante o processo. Como alguém destacou, há uma grande diferença entre «aceitar um filho e conhecê-lo», no entanto, Catarina Gomes trouxe um aconchego diferente a esta obra: por sabermos que aquelas pessoas não ficaram esquecidas. Ela deu-lhes voz, reunindo o que ficou por contar.
🎧 Música para acompanhar: Filha da Tuga, Irma
Tu És Livre?, Ana Pessoa & Mariana Malhão
A liberdade, ainda que imprescindível, não deixa de ser um conceito algo abstrato. Sentimo-la em subtilezas do quotidiano, mas parece passar despercebida por não lhe atribuirmos uma forma única. Talvez por isso seja importante conversarmos sobre ela.
Tu És Livre?, que combina a escrita da Ana Pessoa com as ilustrações da Mariana Malhão, é o nono volume da coleção Missão: Democracia. Assim que iniciamos a leitura, somos confrontados com a pergunta que dá nome ao título. O propósito não é intimidar, embora possamos ficar reticentes na resposta, mas levar-nos a refletir sobre algo aparentemente simples. Claro que a nossa reação inicial será responder de um modo afirmativo, mas será que isso é uma representação fidedigna da realidade?
Achei este livro bastante interativo: para além de levantar várias questões - e ter espaço para respondermos -, apresenta factos, promove o debate e dá-nos liberdade para registarmos propostas e criarmos. Sinto, inclusive, que pode ser uma excelente ferramenta educativa, para ser usada em sala de aula, uma vez que a partir daqui há muitos segmentos que podem ser explorados. Por essa razão, se for lido na companhia de um público infantojuvenil, parece-me benéfico descobri-lo devagar, para que se impulsione a discussão dos temas, para que haja sempre um sentido crítico na análise.
O texto é falaciosamente fácil - algo que partilharam aquando da sua apresentação na Feira do Livro do Porto. Isto porque, sendo destinado aos mais novos, existe o cuidado de manter a linguagem acessível, mas a mensagem inquire, «questiona os lugares comuns que associamos à liberdade» e faz-nos repensar aquilo que observamos, sobretudo, aquilo que damos como garantindo. Por consequência, a partir de uma mancha gráfica que espelha situações quotidianas, também nos faz olhar para dentro.
Tu És Livre? é uma explosão de cor que nos mostra, por um lado, que talvez não exista só uma face para a liberdade e, por outro, que talvez os outros não sejam tão livres como julgamos. Ademais, consciencializa-nos para a importância do coletivo e para a necessidade de nos mantermos alerta. Mais do que um destino, a liberdade é o caminho e temos de permanecer unidos para que não nos impeçam de a vivermos.
🎧 Música para acompanhar: Liberdade, Sérgio Godinho
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Contratempo (Marisa Liz & Iolanda), Imagina (Nuno Ribeiro), we can be our own ruin (Mariana Tereso), É Duro Ser Velho (Filipe Sambado) e Três e Meia (Carolina de Deus & Ricardo Liz).
[caixa mágica]
Irreversível
A história de Irreversível fragmenta-se em dois planos: no principal, temos uma investigação policial acerca da morte de uma adolescente; no secundário, temos uma mãe a quem retiraram a filha bebé. Ambos os casos, ocorridos na Figueira da Foz, aparentam ter uma narrativa independente, mas será que acabarão por se cruzar?
O que ecoa é quase indecifrável, há sinais contraditórios, pistas labirínticas e uma sensação constante de se caminhar para um beco sem saída. No caderno onde vou fazendo anotações, enquanto vejo séries e/ou filmes, registei vários pensamentos, mas foram mais as perguntas que escrevi, porque estava a sentir-me como as personagens: a começar a duvidar de todos os intervenientes. Portanto, fiquei sempre com mais suspeitas do que certezas e isso, para mim, foi um dos pontos mais estimulantes.
Por outro lado, havia uma espécie de neblina a pairar, a impedir que as intenções fossem claras, isentas de qualquer tensão. De repente, como passamos muito tempo com os protagonistas, foi como se os víssemos a fecharem-se sobre si mesmos, ainda que não existisse qualquer tipo de culpa nos seus gestos. Mas, uma vez que a emoção tende a falar mais alto do que a razão, ocultar parecia ser a solução mais imediata.
Um dos aspetos que mais me fascinou e incomodou na mesma medida foi o contraste das reações. O choque consegue ser paralisante, principalmente quando advém de uma perda, mas houve sempre algo a inquietar-me, como se as peças estivessem fora de sítio, como se a verdade estivesse a um palmo de distância e não fossemos capazes de a alcançar. E mantive-me neste limbo até às cenas finais, totalmente imprevisíveis.
Irreversível está cheia de camadas, muito bem oleadas para que nenhuma apareça a mais. Explora temas duros e necessários, mas em nenhum momento senti que estão ali para preencher uma quota qualquer. Muito pelo contrário, surgem explanados porque, infelizmente, não são uma mera representação criativa. Por isso, dei por mim, muitas vezes, a pensar no número de casos que poderiam encaixar nesta narrativa obscura.
Não quero aprofundar em demasia, para não correr o risco de revelar pormenores essenciais, mas permitam-me só reforçar a pluralidade dos assuntos, uma vez que nos mostra a decadência da droga, a fragilidade da justiça, os limites que se transpõem pelo desespero, a falta de aceitação, a necessidade de fazer justiça pelas próprias mãos e a linha ténue que separa o lado pessoal do lado profissional. Ademais, há um jogo de manipulação tremendo, quase perverso, como se agissem em nome de algo maior.
As pontas soltas foram sendo atadas devagar e há um momento em que tudo se torna mais nítido. Atrevo-me, até, a dizer que chegamos a compreender os motivos que desencadearam a mudança de personalidade, visto que existem traumas que anulam tudo o que fomos, mas percebemos que não pode valer tudo, porque isto não é um jogo. Escudando-se no amor, há mesmo quem esteja disposto a tudo para proteger as escolhas de um passado recente. Mas será que o conseguirá fazer sem ser descoberto?
A vida pode mudar num ápice, da maneira mais improvável. E, de facto, há desfechos que não se revertem. Ainda assim, no meio de tantas sombras, talvez exista espaço para a redenção. Irreversível parece-me uma excelente demonstração disso. Disso, e do quanto a verdade e a mentira não são conceitos lineares. Que série extraordinária!
Prisma
A verdade consegue ser caleidoscópica, dependendo do lugar de onde a observamos, dependendo da nossa envolvência. E é esta ideia que a série da RTP Lab explora.
Prisma ocorre num único dia, «visto de cinco perspetivas diferentes»: a de Vera Mendes (a artista plástica), a de Ana Rebelo (a galerista), a de João Maria Cardoso (o colecionador), a de Clara Rocha (a jovem artista) e a de Rui Alves (o crítico de arte). A partir de acontecimentos comuns, é interessante perceber o que cada um recorda, o que cada um procura e o que é que os perturba (e de que maneira). Assim, através desta narrativa plural acaba por se contestar «a existência de uma verdade absoluta».
Em primeiro lugar, adorei o pormenor de a imagem ser a preto e branco, numa clara intenção estética de nos agarrar ao que é fundamental, ao que é profundo, ao que nos define enquanto seres humanos: os gestos, as expressões, os silêncios tão audíveis. Em segundo, fiquei fascinada com a facilidade com que somos manipulados. Ou seja, nós conhecemos os factos de acordo com a visão de determinado protagonista, mas será que as coisas aconteceram exatamente daquela forma e naquele tom? Será que ele nos mostra tudo ou apenas nos revela aquilo que nos fará empatizar com a sua história?
Nesta realidade fragmentada, nada é previsível, já que a personagem molda a narrativa consoante as suas vontades. E é a maneira como a própria observa o quotidiano, reforçando ou enfraquecendo as suas emoções, que faz com que se multipliquem as interpretações de um mesmo momento. Achei este exercício pertinente e necessário.
Prisma, por todas as particularidades descritas, mostra que nem sempre temos noção do que se passa com o outro e que nem sempre temos a abordagem mais cordial quando nos vemos confrontados com algo que nos fragiliza. Além disso, faz-nos repensar aquilo que pesa mais na nossa vida, aquilo que estamos dispostos a fazer para alcançarmos os nossos objetivos. No fim, há detalhes que não controlamos, há ausências que não se recuperam, há coisas que nem a maior quantidade de dinheiro consegue comprar. Será que estamos realmente atentos ao que tem mais valor?
O Elevador
A primeira (e única) obra que li da Filipa Fonseca Silva foi O Elevador e, sem querer entrar em pormenores, confesso que a narrativa dentro desse espaço fechado não foi a minha parte favorita. Ainda assim, estava muito curiosa para assistir à sua adaptação cinematográfica. E não é que me deixou com vontade de redescobrir a história?
Sara e Alex são um casal, mas a relação já esteve mais sólida. Na noite em que saem para festejar o aniversário do pai de Alex, acabam por ficar presos no elevador. Se, até então, a comunicação se apresentava esquiva, ali, sem qualquer ponto de fuga, viram-se obrigados a conversar sobre tudo o que os incomodava e que acabaram por adiar.
É uma curta-metragem, bem sei, mas creio que perdemos a noção do tempo, já que somos mesmo envolvidos nos diálogos, na emotividade, nas sucessivas discussões e nos momentos de reflexão. E foi curioso, para mim, constatar que senti as interações mais fluídas, mais adultas. De facto, ganharam uma vida diferente ao saírem do papel.
Gradualmente, vamos compreendendo o que os fez chegar àqueles pontos de rutura e que é possível estarem «sintonizados em frequências diferentes». Por outro lado, levantam-se dúvidas para as quais nunca teremos respostas definitiva: será que o amor é suficiente para manter uma relação? Será que querermos coisas diferentes tem de significar seguir rotas em separado? Onde ficam os sonhos, as expectativas e a nossa individualidade? O compromisso não é, também ele, feito de cedências, de encontros a meio do caminho? Embora possamos não ser capazes de chegar a uma conclusão universal, há algo que nos unifica: a certeza de a comunicação ser a base de tudo.
O Elevador faz-nos olhar para dentro e mostra-nos que existe uma altura em que temos de colocar certos pensamentos e sensações em perspetiva. Sobretudo, alerta-nos para a necessidade de explicarmos ao outro o que sentimos, porque não é suposto ter de o adivinhar. Há sinais, claro, que podem fazer a diferença, mas nada substitui uma conversa franca, até porque, se não conseguimos ter essa abertura com aqueles que amamos, vamos tê-la com quem? O destino das relações pode não mudar, mas talvez não seja necessário criarmos mais transtornos onde deveria existir verdade.
Ri-me em vários momentos, mas também me comovi, porque sentimos a tensão a desvanecer, vendo os protagonistas a chegarem a um lugar de vulnerabilidade e honestidade onde não tinham estado antes. E acho que é isso que ajuda a tornar o argumento tão especial, tão relacionável. Soube bem ver esta história no ecrã.
[gavetas]
Readers Wrapped
O Spotify Wrapped é uma das iniciativas que mais aguardo no final do ano. Enquanto não somos brindados por esse recapitular de matéria auditivo, a Marisa Vitoriano lembrou-se de fazer uma versão para leitores e, olhem, acho que ficou perfeitinha.
[biblioteca sonora]
Uma compilação de três episódios que prima pelo contraste: por um lado, temos uma conversa que transborda serenidade e, por outro, temos uma conversa um pouco mais caótica, frenética. Para equilibrar, trouxe uma terceira conversa mais curta e bastante descontraída. Acredito, ainda assim, que todas elas nos convidam a refletir sobre uma série de assuntos como, por exemplo, pertença, feminismo, desigualdades e escolhas. Não significa que os encontraremos a todos em cada uma destas conversas, mas acho curioso como vários deles se cruzam, mesmo que partam de bases muito distintas.
Livra-te #148 com Aline Bei
Ar Livre com Marta Bateira
Logo Se Vê com Plutonio
[bilheteira]
O Americano
A série estreia hoje (2 de dezembro) e apresenta-nos a história «de um gangue que, no início da década de 1980, aterrorizou o Algarve, cometendo mais de vinte assaltos a bancos». O primeiro episódio fica disponível às 12h na RTP Play e às 21h na RTP.
Conteúdo do Batáguas
A primeira temporada do projeto do Diogo Batáguas (e equipa) terminará com «um apanhado de 2024 ao vivo». No dia 6 de dezembro (sexta-feira), há sessão no Super Bock Arena, às 21h30. Os bilhetes variam entre os 15€ e os 30€.
Concerto Mundo Secreto
A banda sobe ao palco do Hard Club (Porto), dia 7 de dezembro (sábado), para celebrar 25 anos de carreira. O concerto começa às 21h30 e os bilhetes têm o custo de 16€.
Joana Alegre
A cantora apresenta o seu terceiro álbum, Luas, no dia 8 de dezembro (domingo), no Coliseu do Porto Ageas. O concerto começa às 19h30 e o bilhete custa 10€.
«Quando se trata de cultura, tudo acrescenta. E a melhor parte é que, numa cultura de boa-fé, também tudo é compatível»
[in Falar Piano e Tocar Francês, Martim Sousa Tavares]
Não estava nada à espera de estar aqui. Muito obrigada ❤️