Portugalid[Arte] #47
uma viagem com Luís Bigotte de Almeida, Na Casa com O Próprio, Sempre, Letters Of Joy, Livra-te, sugestões para a semana e o Era Uma Vez do mês
[estante cápsula]
A Casa na Serra, Luís Bigotte de Almeida
A Clássica Editora desafiou-me a ler um livro do seu catálogo e eu aceitei o repto com todo o gosto. Deixando-me à vontade para escolher qualquer título, segui o percurso mais óbvio: aventurar-me num autor português, que talvez não descobrisse de outra maneira. E foi assim que fiquei a conhecer a escrita de Luís Bigotte de Almeida.
Gatilhos: Referência a Aborto e Alcoolismo; Linguagem Gráfica e Explícita
A Casa na Serra é uma odisseia, uma vez que nos revela a história «de uma casa construída no meio das xaras, das giestas e dos barrocais de xisto e granito» e das «gentes que a habitaram». Todas estas pessoas, que se cruzam de alguma forma, seja pelos graus de parentesco, seja por circunstâncias mais ou menos felizes da vida, têm um vasto legado de memórias para partilhar e, naturalmente, segredos escondidos.
Sinto que parti para esta leitura com expectativas equilibradas e fui agradavelmente surpreendida: gostei muito da fluidez da escrita e da maneira como o autor foi construindo o enredo, transportando-nos para este ambiente que oscila entre os ares das aldeias e as convenções da cidade, entre a leveza de contactar com a natureza e a angústia de um passado marcado por um crime hediondo. E nós, enquanto leitores, vamos desvendando cada camada, como se estivéssemos a enfileirar matrioskas.
Esta história é muito portuguesa e tem uma identidade que se alinha com as minhas preferências, já que é daquelas que não tem personagens heroínas e reviravoltas excessivas. Pelo contrário, tem personagens que funcionam bem no seu todo, credíveis, imperfeitas e que poderíamos reconhecer na rua. É por esse motivo que nos impressionamos com «a vida difícil de Amílcar, Diamantino e Glorinha», que acompanhamos o Ti Fedrico, a Ti Casimira e os filhos «criados na serra», que nos divertimos com a chegada da «família à quinta da Ventosa, para umas férias na serra da Malcata» e com as brincadeiras dos miúdos, «que se juntavam para uns dias de felicidade», que avançamos com expectativa para o futuro de Amílcar e Euclides, que faziam do contrabando o seu rendimento, e que nos revoltamos com o grupo de três foragidos, que tanto caos trouxe àquele lugar e, em simultâneo, a uma das famílias.
Por outro lado, compreendemos o quanto o cerco político, o ambiente de ditadura e a guerra têm peso no quotidiano da população, principalmente, quando somos confrontados com as reais prioridades daqueles que, supostamente, têm a missão de a defender. Mesmo que a revolta não seja sentida no plural, torna-se evidente que, para alguns, os valores morais são inexistentes e que a sobranceria é o dialeto oficial.
A Casa na Serra tem, ainda, um tom de vingança. Afinal, existe um sentido de justiça que pretende honrar aqueles que nos são queridos e que foram vítimas de terceiros. É em situações destas que se comprova que o ser humano é feito de muitas áreas cinzentas e que até as melhores pessoas são capazes de comportamentos reprováveis.
🎧 Música para acompanhar: Venham Mais 7, Eu.Clides
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Contra Probabilidades (Bispo & Julinho KSD), SUPERXXXTILO (David Bruno), Senta-te à Mesa (Diogo Clemente), Porque Não Danças (Filipe Karlsson) e Grito - Acapella (Iolanda).
[caixa mágica]
Na Casa com O Próprio - 2 da Manhã
O Zeca começou por partilhar que achava que este novo álbum do Dillaz tem um bocado dos outros projetos e eu dei por mim a acenar em concordância. Depois de ter ouvido O Próprio repetidamente, durante vários dias, fui revisitar trabalhos antigos e achei curioso como certos temas se cruzam: seja por palavras específicas, seja pelas situações/imagens que exploram. Há sempre um toque de modernidade, de novidade, mas é interessante ver que também encontra uma maneira de regressar às origens.
Além disso, neste último episódio, gostei de ver a transição de uma ideia melódica para a sua concretização, percebendo o quanto encaixa bem naquele tema. Por fim, tenho de destacar a honestidade em relação à gestão de expectativas e aos métodos de trabalho. No fundo, são gente como a gente e, ainda que tentem ser produtivos, também encontram maneiras de procrastinar. Aceitava uma segunda temporada.
Sempre - Inquietação
Armínio tem 30 anos e é um dos GNR colocados no Quartel do Carmo. Na noite de 24 para 25 de abril recebe um telegrama a informá-lo que o irmão, em combate na Guiné, tinha falecido. Portanto, a sua única preocupação é pedir autorização para ir a casa ver o estado da mãe. Face à situação envolvente, o pedido de dispensa é recusado e é a partir daqui que Armínio tenta abandonar o seu posto, juntando-se à luta no exterior.
O ambiente caótico e claustrofóbico, sentido pelos dois pontos da narrativa deste episódio, é desarmante: por um lado, compreende-se a inutilidade de tudo aquilo e o quanto é fácil «lutar» dentro de portas, escondidos que nem ratos, enquanto são os outros a correr riscos desnecessários, e, por outro, a insensibilidade de impedir que alguém possa fazer o seu luto por um suposto bem maior. Que mundo é este?
Confesso que Inquietação me tocou mais por ter perdido um familiar muito próximo, recentemente. Ao ver a angústia do protagonista, mesmo sabendo que já nada pode ser feito, imaginei-me no seu lugar e no quanto ficaria destruída por não poder estar perto das minhas pessoas neste momento de despedida. Além disso, fez-me regressar às perguntas que me acompanharam durante a semana: como é que o mundo pode continuar em movimento, quando estamos desfeitos por dentro? Como é que pode haver tanto alarido, quando a única coisa que queremos é que se faça silêncio? De repente, é como se assistimos às coisas de fora do corpo, porque estamos dormentes.
Com testemunhos dos coronéis Nuno Andrade e Nuno Santos Silva e da historiadora Irene Flunser Pimentel, também fica esta questão: estaremos todos do mesmo lado?
[gavetas]
Growing Up Gay
A questão da representatividade tem sido debatida e acho que é bastante clara a sua pertinência, primeiro de tudo, porque nos mostra que não temos de nos sentir culpados e, depois, porque nos prova que não estamos sozinhos. Ademais, também pode ser o impulso que nos ajuda a lamber as feridas e a desconstruir traumas.
Testemunhos na primeira pessoa são, neste seguimento de ideias, uma maneira de compreendermos melhor o quanto nos sentirmos representados é fundamental. Não quer dizer que o caminho se torne mais fácil, mas traz conforto pela certeza de sermos mais. Por isso, convido-vos a ler o número mais recente da newsletter do Jota.
[biblioteca sonora]
Livra-te #129
A Patrícia Amaro fez uma sugestão para um episódio e a Rita e a Joana concretizaram-na na perfeição: «é verdade que a família não se escolhe, mas pegamos nas nossas personagens do coração e criámos a nossa própria árvore genealógica». Ao ouvi-las, foi engraçado associar as escolhas e perceber que me identificava com algumas delas.
Embalada neste espírito, mas mantendo-me num plano nacional, também quis estabelecer elos familiares com algumas personagens que me marcaram. Eis a lista:
Avó: Tia Ermelinda (As Coisas Que Faltam, Rita da Nova);
Avô: Julien Dubois (Balada Para Sophie, Filipe Melo & Juan Cavia);
Mãe: Adriana (Apneia, Tânia Ganho);
Pai: Cartola (Luanda, Lisboa, Paraíso, Djaimilia Pereira de Almeida);
Irmãos: Maria Luisa, Frederico e Pureza Storm (Revolução, Hugo Gonçalves);
Tia: Eliete (Eliete, Dulce Maria Cardoso)
Tio: Jorge (Quando os Rios se Cruzam, Rita da Nova)
Primos: Formiga (Onde Cantam os Grilos, Maria Isaac) e Luísa (O Bairro das Cruzes, Susana Amaro Velho);
Padrinho: Sr. Silva (A Máquina de Fazer Espanhóis, Valter Hugo Mãe);
Madrinha: Dona Alberti (Misericórdia, Lídia Jorge)
Afilhados: Isabel (O Lugar das Árvores, Lénia Rufino), Maria João (Mary John, Ana Pessoa) e Edgar (Supergigante, Ana Pessoa)
Embora seja filha única, não quis perder a oportunidade de ocupar esse parentesco, até porque adorava ter irmãos. Além disso, em vez de pensar naqueles familiares que «nunca ninguém sabe muito bem de onde é que vieram», pensei enquanto madrinha.
[bilheteira]
Rui Massena
O compositor sobe ao palco do Centro Cultural de Belém no dia 25 de junho (terça), às 21h, para um concerto de Piano, Viola de Arco e Violoncelo. Bilhetes dos 10€ aos 30€.
Zeca Afonso: Maior que o pensamento
O Coliseu do Porto Ageas «une-se à Associação José Afonso para apresentar o concerto «Zeca Afonso: Maior que o pensamento». Esta celebração ocorrerá no dia 29 de junho (sábado), às 21h. O valor dos bilhetes varia entre os 10€ e os 25€.
[era uma vez, em 2018]
A televisão, como qualquer outro meio de difusão de informação e entretenimento, sofre metamorfoses. Adapta-se ao tempo e à necessidade. E esta postura tem de ser constante, porque há uma exigência - direta e indireta - por parte do público, que tem poder de escolha e a porta aberta para migrar a sua atenção para pontos de interesse distintos. Por isso, se a caixa mágica pretende perpetuar uma relação de fidelidade, deve produzir conteúdos diversificados, que respondam aos gostos e à procura.
Há, para mim, formatos que se adequam melhor a determinadas plataformas, ainda que me possa acomodar se fizer sentido. Por essa razão, continuo a ver séries na televisão, respeitando a frequência com que são transmitidas e estabelecendo, igualmente, uma rotina confortável, que me permita desligar, desconectar, do quotidiano e conectar com aquela realidade e aquele momento. E torna-se muito mais aconchegante quando nos deparamos com projetos de qualidade suprema, desenvolvidos por personalidades que admiramos. Por isso, quero recuar a 2018.
A Sara só existe na pele da personagem e não tem vida pessoal
Sara retrata a vida de uma conceituada atriz de cinema e de teatro, «cujo talento natural para o drama desaparece quando começa a fazer novelas». A premissa aparenta ser simples, centrando-se na incapacidade de chorar. No entanto, facilmente reconhecemos a sua complexidade, acompanhando a viagem trágico-cómica e introspetiva da personagem, que está cansada de papéis dramáticos e que tem de gerir a doença terminal do pai. Quando questiona as suas escolhas profissionais e de carreia, abraça a mudança, não sem antes cair num profundo descontrolo e sofrimento, que lhe potenciarão a revolução e a catarse que necessita. Sendo confrontada com este ponto de rutura, em consequência de uma «industria carregada de vícios», percebemos que a história se confunde com a realidade, apresentando um tom desconcertante, sem dó nem piedade, e uma carga pura de humor negro.
A ideia original pertence a Bruno Nogueira, que partilhou o processo de escrita com Marco Martins e com Ricardo Adolfo. Esta minissérie é constituída por oito episódios e conta com um elenco de luxo e «uma crítica feroz ao meio audiovisual português». Se estes motivos não forem suficientes, sabe-se, ainda, que a narrativa também se apropria de canções de B Fachada e de uma parte de um romance de Valter Hugo Mãe. Nas palavras de Beatriz Batarda, que deu vida a Sara, o argumento «oferece a possibilidade de explorar campos e géneros de representação que vão do humor à tragédia. Há uma variedade de registos, um hiper-realismo, uma contenção grande e, depois, uma teatralidade mais carregada. E há um sentido de autocrítica (...) da exigência da personagem» com a própria atriz. E é esta pluralidade, de quem transporta vários mundos dentro de si, que nos atrai e que nos conquista.
A obra é intensa, é crua e é vulnerável na dose certa. Manifesta a inabilidade, o vazio, a tentativa de perfeição e a constatação de que somos falíveis. Em simultâneo, sentimos a maldade, a mesquinhez, a crítica gratuita e infundada. E, de repente, tudo se resume a uma única condição: chorar. Como se tudo o resto não tivesse valor, como se o talento se desmoronasse sem esse fragmento. A caricatura é magnífica, bem como a ligação antagónica entre algumas personagens. A interpretação mordaz e ácida, de alguém sem papas na língua, abrilhanta a ação e torna-a muito mais poderosa. E é curioso como as situações - e as sensações - são levadas ao extremo, mas sem perderem a graça e a leveza. Esse contraste está mesmo bem captado - e é genial.
A cena final deixa-nos em suspenso: que portas, sobretudo internas, se abrirão de seguida? Isso é um mistério e dos bons. E faz-nos querer mergulhar mais fundo neste pedaço de amor, oferecido num poema-prosa, de camadas infinitas e intemporais.
«A memória é uma canção que não quero que termine»
[in Máquina de Escrever Sentimentos, Inês Meneses]
🥹😭❤️🩹🌈 obrigado pela menção!!! 🫶🏼