Portugalid[Arte] #32
uma viagem com Ana Pessoa, Djaimilia Pereira de Almeida, José Luís Peixoto, Matilha e sugestões para a semana
[estante cápsula]
Supergigante, Ana Pessoa
A narrativa do segundo livro da Ana Pessoa inverte-se e, desta vez, começamos pelo fim. Afinal, de acordo com o protagonista, «o fim é o princípio de todas as coisas.
Gatilhos: Luto
Supergigante é a história de Edgar, um jovem de 16 anos, mais conhecido por Rígel, no momento em que compreende que o dia mais triste da sua vida também será o mais feliz. Numa travessia entre o passado e o presente, entre a culpa e o êxtase, vêmo-lo a lidar, física e emocionalmente, com a morte do avô e com a magia do primeiro beijo.
O ritmo da narrativa vai oscilando, fazendo-nos sentir a urgência de chegar a algum lado e a necessidade de abrandar, como se recuperássemos o fôlego. Isto porque o adolescente está sempre a correr, só não sei se essa condição é uma estratégia para fugir ou para se encontrar. Seja como for, corre e nós corremos com ele, procurando gerir inseguranças, medos, trivialidades e a imensidão do mundo. Além disso, é através da sua dualidade de sentimentos que o percebemos a organizar pensamentos.
A noção de movimento é, portanto, bastante notória. E não só na escrita da autora, que mantém um discurso constante, cheio de divagações, para nos fazer sentir tudo o que vai na cabeça do protagonista, mas também nas ilustrações fabulosas do Bernardo Carvalho, cujas cores, sombras e traços nos inquietam em igual medida. E, sem querer revelar muito, há um pormenor encantador no canto inferior das páginas. A simbiose entre as duas linguagens transporta-nos para esta correria - que não é só física.
Supergigante recupera o caos da adolescência, os momentos de maior vulnerabilidade, «a dor que nos estraga por dentro», a perceção do que é importante e os pequenos rasgos de esperança. Há muitas perdas nestas páginas, mas também há amor. E há uma realidade que me parece transversal durante o processo de luto e de reinvenção.
É uma obra de uma enorme sensibilidade e a metáfora do fim que é o princípio de todas as coisas floresce a cada passada. Num universo em que coabita a raiva, a melancolia e a beleza dos pequenos gestos, vemos um protagonista a descobrir-se e, inevitavelmente, ainda que possamos já não partilhar a mesma faixa etária, descobrimo-nos também. Os livros da Ana Pessoa têm tido esse efeito em mim.
🎧 Música para acompanhar: Nuvem, Carolina Deslandes
Ajudar a Cair, Djaimilia Pereira de Almeida
As leituras de março, até ao momento, têm sido muito distintas, mas acho curioso que duas delas se interliguem num aspeto. Em Uma Vida Assim-Assim, da Cláudia Araújo Teixeira, fui a um Bairro Social do Porto. Neste livro da Djaimilia Pereira de Almeida, fui ao Bairro Residencial de Nova Oeiras, onde se encontra uma instituição particular.
Gatilhos: Morte
Ajudar a Cair é um livro de ensaios, da coleção Retratos da Fundação, sobre vizinhanças. Assim, durante o verão de 2016, a autora acompanhou os residentes do Centro Nuno Belmar da Costa, que pertence à Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa. E conversou com os residentes, as monitoras e antigos funcionários.
Houve várias questões a moldar a narrativa - «o que implica ser vizinho de alguém?», «conheceremos pelo nome as pessoas de quem tomamos conta?», «como nos modificam aqueles que não nos lembramos de termos deixado entrar na nossa vida?» - e acredito que o objetivo seja refletir sobre elas e não chegar a uma resposta fechada, até porque as visões são plurais e podem coexistir em harmonia. Mas, por outro lado, creio que a principal mensagem é a importância do cuidado e do papel do cuidador - mesmo que, no fim, os nomes sejam turvos. Em algum momento, houve uma mudança que trouxe mais conforto aos dois lados da história e é isso que prevalece.
Numa entrevista concedida ao Comunidade, Cultura e Arte, há uns anos, Djaimilia Pereira de Almeida afirmou que se interessa muito pela doença e pela maneira como ela condiciona o destino e a ação humana, como modifica as relações entre as pessoas e, inclusive, como transforma os vínculos de intimidade e a nossa autoimagem. E acho que isso fica muito claro neste livro e na delicadeza com que retrata os testemunhos de todos os envolvidos. Trazendo para o centro da discussão a Paralisia Cerebral, alarga-nos horizontes e, sobretudo, incentiva-nos a observar mesmo o outro: com empatia, com respeito, como igual, dentro de todas as diferenças que existam.
Ajudar a Cair, pela natureza dos relatos, pode tornar-se um pouco confuso, por vezes desorganizado na cadência, mas não deixa de ser feito de histórias fascinantes.
🎧 Música para acompanhar: Tudo o Que Eu Te Dou, Pedro Abrunhosa
O Caminho Imperfeito, José Luís Peixoto
A pele tem memória, como afirmou José Luís Peixoto numa das entradas deste livro. Ao percorrê-lo, seguimos uma rota fragmentada em vários momentos, lugares e pessoas. Viajamos no tempo e não só de um modo físico e emocional, mas também através dos traços que se pretendem marcar no corpo. Sempre com um olhar atento em relação a tudo o que o rodeia, parecem infinitas as vivências que se cruzam.
Gatilhos: Linguagem Explícita e Gráfica
O Caminho Imperfeito marcou o regresso do autor à Não Ficção, num relato cheio de camadas sobre a sua travessia entre Banguecoque e Las Vegas. Mais do que ser considerada uma narrativa de viagens, creio que esta obra é uma longa reflexão sobre quem somos, sobre o lugar de onde partimos e onde queremos chegar. Pelo meio, há várias paragens que vamos fazendo e que, também elas, contam a nossa história.
Parti para a leitura com outra imagem em mente e, se calhar, foi por esse motivo que não desfrutei tanto da trajetória. A escrita do José Luís Peixoto é próxima, muito credível, sem floreados que nos desviem do essencial, mas, confesso, não foi suficiente para me arrebatar, porque precisava que as partilhas tivessem um elo maior entre si.
Achei intrigante a forma como começou, captando a nossa atenção para um caso que tem tanto de surreal, como de angustiante. Não obstante, apesar de o ir recuperando ao longo do livro, fiquei com demasiadas dúvidas. Entendo a pertinência de o incluir, uma vez que foi o nó que atou os diferentes destinos e intervenientes, mas estava à espera de encontrar desenvolvimentos mais significativos. Além disso, não sinto que tenha explorado os lugares menos comuns do turismo, ainda que tenha aberto a porta para aspetos menos conhecidos da cultura, da religião e, claro, da sociedade.
Por outro lado, achei interessante a maneira como determinados acontecimentos tiveram a capacidade de desencadear tantas memórias, como conseguiram fazê-lo recuar no tempo e pensar sobre alturas da sua vida que já não podiam ser remexidas. Fiquei a pensar nesta espécie de jogo tão singular, que nos permite estar fisicamente num lugar, mas com os pensamentos a quilómetros de distância. É como se se unissem todas as fronteiras e este caminho fosse só uma inesgotável linha reta. E, aí sim, conquistou-me, porque é onde consegue fazer uma série de análises sobre processos de escrita, família, tatuagens e o impacto das pequenas decisões.
O tom pouco linear da narrativa fez-me oscilar. Embora seja evidente o traço intimista, queria ter deambulado mais fundo - quando me senti a chegar a esse ponto, a leitura terminou. Esta procura por um sentido também nunca será uniforme, por esse motivo, o título do livro, creio, assenta-lhe na perfeição. O caminho é mesmo imperfeito. No entanto, «estamos aqui» e «o caminho também é um lugar».
🎧 Música para acompanhar: Time In a Bottle, Jim Croce
[gira-discos]
A playlist desta semana inclui: Que Força é Essa Amiga (Capicua), Eu Não Sou Daqui (João Só), Lógica Astral (Joana Alegre), Saudade (Miguel Araújo & Os Quatro e Meia) e Britney (Mishlawi).
O gira-discos tem um álbum novo: Beco Sem Saída (Diana Lima).
[caixa mágica]
Matilha Ep.7
O último episódio de Matilha fica marcado pela abertura do hipermercado, pelo tempo que se esgota sem soluções e pela toxicidade de uma relação familiar.
No desenlace da narrativa, houve detalhes muito nossos a esconderem-se em vários recantos. Houve diálogos a espelhar a dicotomia do ser humano. E foi curioso perceber, uma vez mais, como uma mentira, ainda que contada com a melhor das intenções, pode minar tudo à nossa volta. A confiança demora a ser construída, mas é frágil e basta um sopro para a derrubar - uma vez quebrada, pode já não ser possível entrelaçar as pontas soltas. E, mesmo que seja, a ligação nunca voltará a ser a mesma.
Há uma viagem ao passado que se torna imprescindível, porque é evidente que os traumas do passado influenciaram a vida de todas as personagens, com particular destaque para os cabecilhas do grupo de criminosos, que levaram de arrasto pessoas inocentes, a tentarem viver com alguma dignidade. Por outro lado, acho que também se torna evidente que a noção de lealdade é bastante questionada e que bastava uma decisão diferente para que o rumo da vida destas pessoas não se fragmentasse.
Matilha, o spin-off de Sul, prometeu e cumpriu. Que série excelente!
[gavetas]
A data não pode ser ignorada. Mais do que a lembrar, permanece imperativo lutar pela Mulher - não só pelo dia em si. Ainda assim, confesso, sonho pelo momento em que assinalá-la seja apenas um marco histórico e não um ato continuo de resistência, de todas as vozes que se unem para que a igualdade não seja uma miragem.
Nenhum direito é garantido, muito menos para as mulheres, e essa imagem é reproduzida nas várias decisões das quais nos tentam excluir - ainda que sejamos as únicas a senti-las na pele -, em todas as ocasiões que nos tentam diminuir, silenciar. E o Dia da Mulher é um lembrete não só de todas as que o impediram, mas também do longo caminho que continuamos a precisar de percorrer, enquanto sociedade.
Portanto, neste segmento, não poderia deixar de destacar três conteúdos feitos para mulheres que celebram mulheres. Porque sororidade será sempre a palavra de ordem.
Dia Internacional da Mulher e o porquê de ele ter TUDO a ver com o próximo dia 10 de Março, por Tânia Graça
Um poema de Ana Luísa Amaral na voz de várias autoras de língua portuguesa, uma iniciativa da Livraria Wook
15 Livros Para o Dia da Mulher, por Marisa Vitoriano
[bilheteira]
📺 Erro 404
A nova aposta da RTP estreia hoje (11 de março), às 21h.
Deixo-vos a sinopse: «Rita acabou de perder a melhor amiga e companheira de casa. Está triste, desmotivada e apática, quando descobre no telemóvel uma aplicação que lhe permite viver a vida de outras pessoas. A precisar de mudar algo na sua vida, decide instalar a Appy e embarcar nas várias experiências que a aplicação tem para lhe oferecer. Porém, Rita não percebe que os erros da aplicação ainda em fase experimental, provocarão consequências irreparáveis na sua vida».
📺 Taskmaster 4
A nova temporada de Taskmaster já tem data de estreia, finalmente. Se for do vosso agrado, apontem na agenda: o primeiro episódio será transmitido no sábado (16 de março). Os apresentadores continuam a ser os mesmos, os épicos Vasco Palmeirim e Nuno Markl, mas o elenco sofreu algumas alterações. Desta vez, estarão a concorrer Carolina Deslandes, Madalena Abecasis, Toy e Cândido Costa. Aguardo o melhor!
«só quem come o pequeno-almoço/tem a boca demasiado cheia/para perceber o fundamental:/é que sem elas/o mundo não chegaria sequer/ao meio dia»
[in A Importância do Pequeno-Almoço, Francisca Camelo]
Que honra estar nesta newsletter 🫶
"achei interessante a maneira como determinados acontecimentos tiveram a capacidade de desencadear tantas memórias, como conseguiram fazê-lo recuar no tempo". O tempo é indissociável da memória, até pela própria definição de memória, que nos remete imediatamente a um tempo passado. Mas o que é a narrativa da nossa vida, senão um relato do tempo e das memórias?
Tempo, memória, emoções: a tríade que define a forma como vemos a vida.
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