Portugalid[Arte] #31
uma viagem com Maria Francisca Gama, Cláudia Araújo Teixeira, Matilha, Bom Partido, Alexandra Lucas Coelho e uma espécie de Guia Eleitoral Para Totós
[estante cápsula]
A Cicatriz, Maria Francisca Gama
O meu primeiro contacto com a obra da Maria Francisca Gama não foi o mais animador, tenho de reconhecer. Adorei a premissa e encontrei pontos interessantes n' A Profeta, mas não me encheu as medidas, uma vez que senti que precisava de amadurecer os temas que procurou explorar. Não obstante, sabia que lhe daria uma nova oportunidade e o mais recente livro da autora foi a desculpa perfeita para isso.
Gatilhos: Violência, Luto, Linguagem Explícita e Gráfica
A Cicatriz abre-nos a porta para a história de um casal jovem, apaixonado, numa relação estável e saudável. Através da voz da protagonista/narradora, de quem nunca chegamos a saber o nome, acompanhamos as férias no Rio de Janeiro, banhadas de sol, sedução e leveza, e o quanto esperam que sejam dias inesquecíveis. E foram. Só que há um que ficará marcado pelo pior motivo, abalando-os para sempre.
É percetível, desde o começo, um prenúncio de fatalidade e a autora embala-nos num novelo de memórias, revelando-nos os factos no seu momento certo. As descrições da cidade vão camuflando o inevitável, mas o perigo permanece à espreita. E nós, enquanto leitores, percebemos que é mesmo uma questão de tempo até sermos confrontados com a desgraça. Este jogo prende-nos e torna a leitura mais frenética.
Tendo em conta alguns pormenores e a própria conversa que a Maria Francisca Gama teve com a Rita da Nova, construí uma teoria (com duas possibilidades) acerca do que tinha acontecido ao casal. E, por isso, achei que estaria preparada não só para toda a história, mas para aquela cena em específico. Mas não estava. Nem poderia estar: porque é crua, explícita, demasiado vívida, de uma brutalidade tremenda. E está tão bem descrita, que, por instantes, senti-me lá, impotente, a assistir a tudo. A narrativa tem uma identidade muito visual e, ali, isso foi ainda mais notório, ao ponto de sentir o estômago às voltas. Apesar de não ser uma passagem imprevisível, acredito que a experiência de leitura não fica comprometida, porque a escrita é fabulosa.
Sem querer entrar em comparações, referir que senti uma enorme evolução do livro anterior para este, com um ambiente mais coerente e credível. Além disso, denota um equilíbrio maior entre a descontração e a vulnerabilidade, entre as motivações e a concretização. Fiquei apenas com uma questão pendente, referente ao período pós-férias no Rio, onde é mais evidente o trauma, porque tive dificuldade em compreender o silêncio e a aceitação. No entanto, não belisca o quanto a obra me marcou, porque é mesmo um «relato profundo e duro» sobre tudo aquilo que não controlamos.
A Cicatriz lê-se num piscar de olhos, mas faz-nos pensar no quanto as nossas decisões se revestem de acasos, do quanto apresentam um traço inesperado, atendendo a que nunca sabemos aquilo que nos reservam ao certo. Nesta história, emocionei-me e revoltei-me na mesma medida. E questionei-me sobre como se sobrevive, e se é suposto, quando nos dilaceram por inteiro. Mas, no meio das trevas, também li amor.
🎧 Música para acompanhar: Quem Tem Mossa, Iolanda
Uma Vida Assim-Assim, Cláudia Araújo Teixeira
O meio onde nascemos, nas palavras de Cláudia Araújo Teixeira no seu livro de estreia, é «uma espécie de certificado de origem controlada». Por esse motivo, definir-nos-á e tornar-se-á inevitável questionar se a nossa vida não poderia ter sido diferente, caso tivéssemos crescido noutro lugar. Será que seremos sempre aquele sítio?
Gatilhos: Abusos, Referência a Violência e Suicídio; Linguagem Explícita
Uma Vida Assim-Assim cruza a década de 70, cujos traços de modernidade iluminam o país, com a realidade de Cristina Maria, que nasceu num bairro social do Porto. Nesta espécie de microcidade, construída com o propósito de albergar «os desalojados do progresso», compreendemos que há uma dinâmica social própria, autossuficiente, que desfruta de uma economia paralela. E, assim, o Bairro parecia ser o mundo inteiro.
O tom da história é muito português e muito nosso - sim, mesmo não sendo natural da cidade Invicta, hei-de incluir-me sempre no seu regaço. O meu horizonte não é o lote da frente, mas, sem que lhe visse a fachada, senti-me a entrar neste lugar com tanta vida dentro. O recurso ao calão, através de todos os nossos advérbios de intensidade, à música, ao S. João e aos serões a ver novelas brasileiras, que tanto nos fizeram sonhar, ajudaram não só a criar este ambiente, mas também a sentirmo-nos parte dele.
O bloco da família Fonseca era o onze e viver naquela casa assemelhava-se muito a um jogo de Tetris, tendo em conta a falta de espaço, as dificuldades e a desproporcionalidade. Foram tempos complexos, nem sempre cruéis, nem sempre auspiciosos, e a protagonista foi acalentando o desejo de voar mais alto, de transpor os limites que sentiu serem-lhe impostos. Mesmo que se descobrisse e reinventasse naquele Bairro - e escrevo-o com letra maiúscula porque acredito ter sido uma das personagens centrais deste enredo -, a intenção de Cristina Maria era clara: sair dali.
Acho que é fácil compreendermos a sua ansiedade de abrir as asas. Ainda que não se sentisse verdadeiramente sufocada, aquele lugar era o lembrete constante do quanto almejar uma vida remediada, para muitos, já era o pináculo do privilégio, da sorte, de um futuro melhor. E, por isso, também é fácil compreender que esta história é o espelho de um país desigual, que a vergonha caminha sempre ancorada aos nossos passos, porque o estigma é audível, que são mais os sonhos vedados do que as pontes para a ambição. Há uma da lei da sobrevivência que é um dialeto partilhado por todos.
Uma Vida Assim-Assim dá, igualmente, a entender que, por mais que se chegue a sair de um lugar, aquele lugar nunca sairá de nós. O Bairro será sempre da Cristina Maria e das suas pessoas. E vice-versa. Não sabia o que esperar deste romance, mas comovi-me com os seus retratos, revoltei-me com os abusos e os comentários machistas, ri-me com as peculiaridades que contam uma história a tantas vozes. Não sei o que existe para lá dos muros deste Bairro, mas há qualquer coisa que, ali, será sempre familiar.
🎧 Música para acompanhar: Um Dia de Domingo, Tim Maia & Gal Costa
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Bênção (Mizzy Miles, Bispo & Van Zee), Há Sempre Um Fardo (Capitão Fausto), A Rendição (Benjamim), Dar de Beber à Desventura (Fado Bicha) e, permitam-me uma pequena batota, Sentimento Bom (Wander Isaac).
O gira-discos tem um álbum novo: SNTMNTL (Diogo Piçarra).
[caixa mágica]
Matilha Ep.6
A série teve uma semana de interregno, mas regressou para o penúltimo episódio. Agora que nos encaminhamos para as despedidas, os nervos estão à flor da pele, até porque o cerco aperta ainda mais. Há certezas que caem por terra e parece que os protagonistas estão numa corrida contra o tempo. Se, por um lado, o inspetor Lacrau sente a pressão de apresentar resultados concretos, por outro, Mafalda continua a ser um rosto de resistência. Em simultâneo, descobrimos um Matilha completamente desnorteado e acho que o seu verdadeiro teste de fogo chegará no episódio final.
Bom Partido
O Guilherme Geirinhas é um comunicador nato, por isso, fico sempre interessada nos projetos que tira da gaveta. Uma vez que está «farto de política», decidiu juntar «alguns amigos para falar sobre a vida» e sobre todas aquelas questões que, sendo de máxima importância, não têm espaço num debate televisivo ou no parlamento.
Bom Partido é o concretizar da premissa citada anteriormente. É uma mini-série de seis conversas com candidatos políticos: Pedro Nuno Santos (PS), Rui Tavares (Livre), Rui Rocha (IL), Mariana Mortágua (BE), Luís Montenegro (AD) e Inês de Sousa Real (PAN). Todos os candidatos com assento parlamentar foram convidados, mas nem todos aceitaram o repto. Por um lado, tenho pena desse desfecho, por outro, agradeço que tenha sido assim. Sei que acabaria por assistir a todas as entrevistas, mas uma delas seria apenas pela curiosidade de ver o Geirinhas a desarmar o entrevistado e não porque tenha qualquer interesse em escutar aquilo que tem para dizer ao mundo.
O conceito que sustenta a ideia é a desconstrução da figura política. Portanto, acho que a abordagem humaniza e evidencia um lado mais descontraído dos candidatos, sem que acusem a pressão. Através de memórias, experiências e trivialidades, somos levados para um ponto mais vulnerável, em que saem da sua zona de conforto. Para além de ser um formato diferente, original, creio que assume uma certa relevância.
A consciência de estarem a ser gravados não se perde, mas sinto que vê-los neste ambiente nos ajuda a compreender um pouco melhor a pessoa que são. Ajuda-nos a identificar como se comportam nas questões banais do quotidiano, quando os holofotes não lhes exigem uma preparação prévia. Claro que, mesmo assim, isto não é um medidor de competências. Sou-vos sincera, ainda não tenho o meu voto cem porcento definido e sei que não o terei depois de assistir às conversas, porque, por melhor que seja o trabalho aqui apresentado, por mais que me mostrem um lado menos conhecido, não são a garantia que procuro, não me trazem uma noção plena da forma como pretenderão gerir e salvaguardar os interesses de um país inteiro. Não obstante, sem querer perder o foco, o objetivo desta iniciativa nunca foi esse.
É importante, para mim, reconhecer este lado humano, porque me abre uma porta para o que os move, para o seu caráter e para a forma como se levam ou não a sério. E, por esse motivo, tenho assistido a estas entrevistas de peito aberto, com entusiasmo e desfrutando do lado de entretenimento que abraça o formato. Até ao momento, já foram publicadas três - Pedro Nuno Santos, Rui Tavares e Rui Rocha - e tenho-vos a dizer que me ri muito com os dois primeiros convidados. O Geirinhas conduz a conversa de uma forma exímia, mas o contraponto também tem sido excelente.
Bom Partido vem aproximar eleitores e desmistificar a imagem que podemos ter da política e dos candidatos, sempre com uma aura formal. Se serão um bom partido ou não, logo decidiremos. Para já, fica a ressalva de que é um projeto cheio de mérito.
[gavetas]
Sobre as Legislativas
As eleições legislativas aproximam-se e, para além de sentir uma certa apreensão pelo desfecho, sinto que estamos todos a gerir inseguranças, expectativas e a sensação de desnorte. Queremos mudanças justas, significativas e com igualdade, mas parece que andamos aqui a tentar jogar esta partida de xadrez complexa. Honestamente, mesmo sabendo os valores que defendo, mesmo sabendo para que lado pendo mais, nunca me senti tão confusa. E foi a pensar em pessoas como eu que o Jota resolveu fazer um excelente serviço público e partilhar na sua newsletter uma espécie de guia eleitoral para totós. Eu sei que a Portugalid[Arte] tem uma identidade cultural, mas a política manifesta-se em tudo, portanto, fazia-me todo o sentido incluir este conteúdo.
[biblioteca sonora]
Alexandra Lucas Coelho n’ A Beleza das Pequenas Coisas
A jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho esteve à conversa com Bernardo Mendonça, no podcast A Beleza das Pequenas Coisas. A conversa, pela sua extensão, está dividida em duas partes e é mesmo fascinante ouvi-la a debater sobre questões humanitárias, a partilhar factos sem esquecer o lado emocional, a consciencializar-nos para o quanto o que se passa no mundo é o espelho de uma responsabilidade coletiva.
Naturalmente, o conflito israelo-palestiniano foi tema central, mas houve espaço para se abordarem outras questões (inclusive, culturais). Foi uma partilha bastante enriquecedora, que só aumentou a minha vontade de descobrir a sua escrita.
[bilheteira]
Nini, Ticas Graciosa
«O destino tirou-lhes os pais. Ela viveu para saber porquê» é a premissa do romance de estreia da escritora Ticas Graciosa. O livro já se encontra em pré-venda, com entrega prevista a partir do próximo dia 7 de março (quinta-feira).
«não nos podemos esquecer que coragem não é um acto pontual, é uma posição na vida» [in Calendário «12 coisas a não esquecer em 2024», do Fred Gomes]
🥹😭💗