Portugalid[Arte] #28
uma viagem com Francisco José Viegas, Inês Fonseca Santos, Matilha, À Noite Mata, Crise de Identidade, Só Se Estraga Uma Estante e A Cicatriz
[estante cápsula]
Morte no Estádio, Francisco José Viegas
O Livra-te (podcast da Rita da Nova e da Joana da Silva) teve, recentemente, um episódio dedicado a premissas e concretizações: «boas premissas e execuções não tão boas» e vice-versa. Na altura em que saiu o episódio, ainda não tinha lido o livro do Francisco José Viegas, mas, agora que o fiz, seria um exemplo para o primeiro grupo.
Gatilhos: Morte, Traição
Morte no Estádio leva-nos para a zona em que o rio Douro se encontra com o oceano Atlântico, porque um famoso futebolista do FC Porto «é assassinado num bar irlandês em plena Foz». Rapidamente, percebemos que existem vários implicados e que os inspetores Filipe Castanheira e Jaime Ramos unem forças para desvendar o crime.
A premissa é ótima e deixou-me bastante entusiasmada, no entanto, a concretização não funcionou comigo. Não desgostei totalmente da escrita (creio que resultaria noutro contexto literário), e sabia que penderia mais para o romance do que para o policial, mas acho que o autor perdeu demasiado tempo em narrativas paralelas, a descrever pormenores que não acrescentam algo ao enredo, com muitas metáforas e um certo pedantismo, porque todas as personagens tinham uma lição de moral para partilhar. A partir de certo ponto, tornou-se excessivo e uma fonte de distração.
Tinha tudo para ser um livro excelente, se se focasse «nas relações obscuras do mundo do futebol» ou se apenas explorasse «as paixões dispersas e voláteis que acabam por dar sentido à falta de sentido da vida». Pela sua construção narrativa, fiquei com a sensação que quis englobar tudo ao mesmo tempo, mas que só ficaram pontas soltas. As ligações perigosas permanecem só nas entrelinhas, quando seriam um dos aspetos mais interessantes para aprofundar. Aliás, houve uma altura em que percebi que o crime foi apenas uma manobra de diversão, porque perdeu qualquer destaque.
Além disso, senti as personagens pouco coerentes e credíveis, e nem o título me fez sentido. Acho que o autor conseguiu retratar bem algo que é muito nosso, como as partilhas que fazemos à mesa e pela comida, mas não foi por esta imagem que vim. Nem pelo traço nostálgico que parece quase forçado. Terminei a leitura como comecei: às cegas. E tenho pena, porque prometia ter todos os elementos para resultar.
🎧 Música para acompanhar: Neblina, Luar, Rita Onofre & Sara Cruz
Vale a Pena?, Inês Fonseca Santos
O lado dos bastidores fascina-me, porque gosto de compreender o processo até chegar ao resultado final, sem que isso comprometa a magia do desconhecido. Inclusive, acredito que pode elevar o respeito pelo trabalho em si. Enquanto leitora e pessoa que escreve, entusiasma-me conhecer partes menos acessíveis do meio literário, as rotinas dos autores e as suas visões sobre temas distintos. Portanto, parti para o livro da Inês Fonseca Santos com expectativas elevadas e fui ainda mais surpreendida.
Vale a Pena? convida-nos a entrar em «casa de 11 escritores portugueses», para conversarmos sobre sonhos, medos e processos criativos; e para refletirmos sobre vários tópicos acerca dos livros e da literatura. Há perguntas transversais e uma infinidade de pareceres, o que corrobora a pluralidade desta arte tão nobre.
Uma das componentes que achei mais fascinante nesta obra foi sentir que, independentemente da minha perspetiva, também tinha lugar aqui, que a minha visão seria acolhida e validada, porque em nenhum momento há juízos de valor, julgamentos e verdades absolutas. Pelo contrário, encontramos escritores de coração aberto a falar sobre algo que lhes é tão querido, de um lugar emotivo e sem certezas. Ou, melhor, com as certezas que funcionam para cada um deles, mas sem imposições.
O livro lê-se num sopro (tem pouco mais de cem páginas), mas fiz várias anotações, uma vez que se centrou em tópicos que me interessam. A título de exemplo, a memória, a privacidade, a escrita que não é só para literatura, o mercado e a forma como encaram a escrita. Foi interessante perceber as camadas que se criam em simultâneo e o quão distintos podem ser, mesmo que partam de um elo comum.
Acredito que a literatura se enriquece na partilha e na honestidade. Por esse motivo, também apreciei a franqueza dos testemunhos, sobretudo em relação a temáticas mais sensíveis como os prémios literários, porque nos aproximam e nos ajudam a refletir sobre pontos que, por não serem tão abordados, passam despercebidos. Quando os escritores abrem esta porta, sinto que ganhamos todos, porque existe entendimento.
A Sofia referiu que gostaria que este livro tivesse continuação e eu revi-me nessas palavras, porque há novas vivências para descobrir. Numa altura em que as redes sociais e a presença online têm tanto impacto, seria interessante contactar com os desafios inerentes a essa realidade. Podem não ter existido mudanças transcendentes no meio, desde que este livro saiu, mas há questões que são urgentes agora e que, se calhar, não o seriam na altura. No fim, podemos discordar, mas o debate ficará mais diversificado. Enquanto leitora e pessoa que escreve, cresço nessa possibilidade.
Escrever nunca será só escrever, como alertou Álvaro Magalhães. Apesar das nossas motivações, é perceber que a realidade e o sonho caminham entrelaçados, que há vozes que não queremos sossegar, que pode ser uma forma de resiliência. E, acima de tudo, respondendo à pergunta do título, percebemos que valerá sempre a pena.
🎧 Música para acompanhar: Cavaleiro Andante, Rui Veloso
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Fósforo (Ana Bacalhau), Calma (Tomás Adrião) e Tens o Meu Coração (Cassete Pirata).
O gira-discos tem um álbum novo: Vai-se Andando? (Edmundo Inácio).
[caixa mágica]
Matilha Ep.4
O cerco aperta: não só porque o grupo de assaltantes insiste com Matilha e Mafalda continua preocupada com a saúde e a habitação do tio, mas também porque o inspetor Lacrau vê o seu passado escrutinado. O que mais me fascinou neste episódio foi o destaque nas burocracias exasperantes (e tantas vezes surreais por aquilo que exigem do cidadão) e a noção de que nem sempre podemos confiar em quem está ao nosso lado. Olhar por cima do ombro, em jeito de desconfiança permanente, parece o passo mais acertado, porque não sabemos quem nos poderá entregar/comprometer.
[biblioteca sonora]
À Noite Mata
Fui descobrir, finalmente, o podcast do André Pinheiro, À Noite Mata. Os episódios são curtos, mas gosto que traga alguns temas para debater/analisar e depois tenha uma dinâmica mais centrada na piada, explorando um certo exercício criativo, que acabará por ter presença nos seus sets de stand up. Se corre sempre bem? Nem por isso, mas gosto da predisposição para arriscar. É o tipo de conteúdo descontraído que aprecio.
Crise de Identidade 47
Este episódio da Sofia marcou-me não só por se focar num aspeto vital da sociedade, não só por corroborar que o feminismo é uma luta diária e que existem preconceitos que ainda precisam de ser quebrados, mas também por me ter levado a refletir sobre o facto de tendermos a analisar o passado com os conhecimentos de agora.
Só Se Estraga Uma Estante 41
O que me prendeu a este episódio foi, em particular, a segunda parte, onde a Ana Grifo e o Tomé Ribeiro Gomes debateram sobre o ghostwriting, uma dimensão literária que ganhou destaque no ano transato. Para além de destacarem alguns exemplos, achei interessante toda a questão da moralidade associada a esta prática.
A Cicatriz
A Maria Francisca Gama está muito perto de lançar o seu mais recente livro, A Cicatriz, e quis apostar numa dinâmica diferente para o promover. Assim, pensou num podcast de três episódios. A primeira convidada foi a Rita da Nova, que já leu a história, e foi mesmo interessante acompanhar a conversa entre as duas, porque a Rita conseguiu trazer duas perspetivas - a de leitora e a de autora, e porque nota-se a amizade e a cumplicidade que as une. No meu imaginário de amizades entre escritoras, elas são o exemplo perfeito daquilo que gostaria de ter, um dia.
Falaram sobre várias componentes da obra, do processo e do próprio meio literário, mas não resisto a destacar as partes que mais me fascinaram: quando refletiram sobre a necessidade de o leitor procurar por personagens heróicas, sobre a responsabilidade na escrita e sobre lermos acerca de temas que nos apoquentam, como se fosse uma espécie de preparação. Estou mesmo entusiasmada para descobrir a história.
«É estranho os balões fazerem tanto barulho a rebentar se só os enchemos de silêncio» [in Best Seller, Mami Pereira]
Olhaaaa eu! 🥹🥹🥹