Portugalid[Arte] #27
uma viagem com Joana Estrela, Djaimilia Pereira de Almeida, Matilha, Somos Todos Malucos (em dose dupla), Um Homem Não Chora, Prova Oral, Debaixo da Língua, 3D Fun Art Museu e Pedro Teixeira da Mota
[estante cápsula]
Mana, Joana Estrela
A minha lista de Natal, durante a infância, incluía sempre um desejo peculiar: um irmão. Nunca aconteceu e acabei por fazer as pazes com essa inevitabilidade, não só por compreender as motivações dos meus pais, mas também por ter encontrado quem se aproximasse desse elo. Ainda assim, por não partilharmos a mesma casa, ficarei sempre com uma visão enviesada da realidade descrita no livro da Joana Estrela.
Mana conta a história de duas irmãs, recorrendo a uma narrativa epistolar para evidenciar as quezílias e os cuidados inerentes à relação de ambas. E, parece-me, a qualquer vínculo entre irmãos. Apesar de ser filha única, creio que traça um retrato transversal e fidedigno. Aliás, nota-se que não fica num mero plano especulativo.
A carta é escrita pela irmã mais velha e tem muita graça na forma como nos apresenta todas as suas queixas, até porque engloba várias técnicas, estilos, cores e criatividade - como se a irmã mais nova tivesse mesmo passado por estas páginas, qual furacão. Além disso, há muita verdade nesta partilha e, por isso, torna-se tão próxima.
Outro aspeto curioso prende-se com a parte emocional: embora apresente pontos de discórdia e irritações, esta também é uma carta de amor. Percebemo-lo apenas nas entrelinhas, mas não me parece que sobrem muitas dúvidas quanto a isso, quanto à sua existência, uma vez que está sempre por perto e que as suas histórias se unem.
Mana lê-se num sopro, mas tem tudo o que necessitamos para compreender a mensagem. Ademais, mostra que, mesmo numa relação oscilante, há laços que se estreitam, que se mantêm inquebráveis. Ser irmão não é o mesmo que ser amigo, porém, não implica estar constantemente em lados opostos da margem.
🎧 Música para acompanhar: Da Mesma Pele, Irma
Toda a Ferida é Uma Beleza, Djaimilia Pereira de Almeida
O desconhecido pode ser assustador. E, quando vem acompanhado de incompreensão, tendemos a reprimir quem nos rodeia: pela diferença, por não serem o que esperávamos, por acharmos que têm de se manter nos dogmas da sociedade. No livro de Djaimilia Pereira de Almeida seremos confrontados com esta dura realidade.
Gatilhos: Violência, Tortura, Negligência, Linguagem/Cenas Explícitas
Toda a Ferida é Uma Beleza é a história da Maria: uma menina dócil, alegre, curiosa, que adorava escrever, mesmo que os seus traços não fossem percetíveis, mesmo que nenhuma palavra se formasse e a mensagem ficasse só a morar na sua cabeça. Ao encargo da madrinha, sofreu sempre na pele as consequências desse seu fascínio.
A narrativa é pequena (sessenta páginas), intercalada com as belíssimas ilustrações de Isabel Baraona, no entanto, demonstra bem a opressão que a protagonista viveu e o perigo das mentalidades fechadas e dos modelos que se pretendem perpetuar. Por outro lado, creio que satiriza o papel atribuído à mulher e a insistência de querermos o outro à nossa imagem, dentro de caixas que acreditamos serem as mais corretas. Tudo o que fuja dessa essência necessita de uma intervenção urgente.
O relato é duro, sem filtros e com vários momentos de crueldade pura, que podem chocar. Isto porque é inconcebível que alguém que tem a função de cuidar, independentemente de ser um elo familiar ou não, possa ser a maior fonte de dor. Portanto, sem querer revelar muito, digo apenas que me revoltei imenso com esta madrinha, cujo único propósito era castigar, quando aquilo que a afilhada mais precisava era de alguém que a aceitasse e a amasse tal e qual como ela era.
Não obstante, Toda a Ferida é Uma Beleza também nos mostra que, perante as atrocidades da vida, a bondade e o perdão são trunfos que desarmam quem só vive de escuridão. Por esse motivo, na sua inocência, Maria lutou pelos seus sonhos, procurou quebrar a ignorância com que a queriam cobrir e absorveu o mundo à sua volta, observando cada detalhe. Achei este contraste maravilhoso, até porque corrobora que não temos de manter certas narrativas e que cada um oferece o que lhe corre no peito.
Fiquei de coração apertado, mas o final trouxe esperança.
🎧 Música para acompanhar: Ferida, Inês Apenas
[gira-discos]
A playlist da semana inclui: Josézito (Edmundo Inácio), Prada Glasses (Mishlawi) hello (Dillaz), É o que É (Nena), Flores (Lázaro & Rita Rocha), Peito (Mimicat), Atrás da Barricada (Benjamim), Compromisso (Filipe Karlsson), Maré de Sorte (Teresinha Landeiro) e Tens-me à Mão (S. Pedro).
[caixa mágica]
Matilha Ep.3
Os testemunhos do assalto ao hipermercado são ouvidos e, em paralelo, Mafalda e Matilha tentam evitar que o tio seja despejado. O contexto socioeconómico está mesmo bem construído, mostrando-nos a linha tão ténue entre o conforto e a sobrevivência, e o quanto é difícil jogar limpo quando os recursos são escassos. Além disso, estou a achar fascinante acompanhar a evolução do Matilha, porque parece que se esconde em inúmeras camadas e que está num permanente debate interno.
Somos Todos Malucos #84
O Guilherme Geirinhas foi um dos convidados mais recentes do podcast do Raminhos, Somos Todos Malucos, e que partilha extraordinária esta! O diálogo foi tão elucidativo e fluído, que até me senti uma intrusa, como se estivesse a ouvir uma conversa íntima à descarada (mas eles deixaram). Tanto o Geirinhas como o Raminhos têm Perturbação Obsessiva-Compulsiva, portanto, é claro que se focaram nisso, mas abordaram muitos outros temas. Há muita honestidade e compreensão mútuas neste episódio, razão pela qual se torna impossível não nos sentirmos incluídos nesta troca de ideias. Acho os testemunhos muito válidos e pertinentes, se puderem, ouçam.
Somos Todos Malucos #85
António Raminhos também convidou o Nelson Nunes para o podcast e conversaram bastante sobre um tema ainda tabu: a morte. O assunto veio em consequência do lançamento mais recente do autor - Enquanto Vamos Sobrevivendo a Esta Doença Fatal - e do facto de ambos pensarem muito sobre a morte - ainda que, por vezes, por motivos distintos. Entre medos, histórias peculiares e curiosidades, o tom descontraído marcou o diálogo, mas ficaram várias reflexões nas entrelinhas. Como bónus, Nelson Nunes explicou um dos aspetos mais incríveis do seu livro - acho-o hilariante.
[biblioteca sonora]
Um Homem Não Chora
O Público tem um podcast novo, Um Homem Não Chora, no qual Maria Ana Barroso entrevistará homens de várias áreas para compreender e debater o que «é ser homem hoje», bem como «as diferentes experiências, visões e estereótipos de masculinidade».
O segundo convidado foi o Martim Sousa Tavares, por isso, é não podia deixar de ouvir, até porque o acho sempre lúcido e engraçado a contar as suas histórias, conseguindo equilibrar uma aparente trivialidade com pontos de reflexão muito interessantes. Assim, transitando entre a vergonha de tocar piano e a saúde mental, transitando entre desigualdades, o papel do cuidador/de cuidado, os modelos que repetimos e os que tentamos romper, é uma conversa rica, que vale a pena ouvir.
Prova Oral
Valter Hugo Mãe foi um dos convidados mais recentes do Prova Oral, para conversar sobre Deus na Escuridão. Naturalmente, a conversa estendeu-se para outros temas (incluindo futebol), o que tornou o momento ainda mais fascinante.
Adoro ouvir o Valter Hugo Mãe, porque tem imensa graça e um sentido crítico muito aguçado, mas sem ser inconveniente. Por esse motivo, fico sempre na expectativa, a ver para onde escalará o seu pensamento. Além disso, é um homem culto, que consegue criar pontes entre várias temáticas, sempre de um modo fluído, elegante.
Inspirações, vivências e cultura são pontos centrais desta conversa, mas também achei interessante que trouxesse outra visão para a discussão: o ser possível viver de direitos de autor, em Portugal. Continuo a sentir que não é uma possibilidade assim tão transversal, que ele é uma exceção e não a regra, mas considero importante ter esta visão da narrativa, por ser uma realidade. Em simultâneo, achei interessante que conversasse sobre a sua relação com o dinheiro (algo sobre o qual temos tantos pruridos), com a música, com a existência de extraterrestres e com elos familiares.
Debaixo da Língua com Tânia Graça
A Tânia Graça é psicóloga clínica, sexóloga e autora do Voz de Cama, que conduz com Ana Markl. Embora não a acompanhe há muito tempo, é uma das figuras que já não dispenso no digital: porque é pertinente nas partilhas, porque tem uma energia contagiante e porque é um exemplo daquilo que deve ser a sororidade.
Aprendo sempre imenso com ela, não só por todo o conhecimento que tem e mobiliza, mas também pela maneira como comunica, deixando-nos mais conscientes de certas problemáticas. Recentemente, foi convidada do Rui Maria Pêgo, no Debaixo da Língua, e a conversa foi descontraída, mas com toques de seriedade quando necessário. Juntaram-se dois comunicadores natos, portanto, o resultado só poderia ser incrível.
[cartaz]
3D Fun Art Museu
O conceito de museu pode ser desconstruído e o 3D Fun Art Museum, na Rua de Faria Guimarães, no Porto, veio assumir essa missão com 40 cenários distintos.
Nesta galeria de ilusão ótica, nem tudo é o que aparenta ser. Portanto, teremos de explorar os cenários de cada sala, recorrendo ao melhor trunfo de todos: a criatividade. O resultado, para além de ser surpreendente, consegue proporcionar momentos de diversão para todo o grupo (de amigos e/ou de familiares).
O conceito teve origem em 2015, «quando o casal luso-alemão Lara e Ralf Hein estava de férias no estrangeiro». Durante uma viagem à Tailândia, visitaram um espaço semelhante e decidiram «adaptar a ideia à nossa cultura, incorporando cenários alusivos às diferentes regiões onde estão localizados». No entanto, só em 2019 é que o sonho se concretizou. E, assim, o primeiro 3D Fun Art Museum abriu no Funchal.
O êxito foi tanto que alargaram o projeto a Lisboa, a Portimão e ao Porto. Foi este último que visitei e fiquei impressionada com a oferta. Isto porque encontramos diversas «obras de arte interativas tridimensionais» e uma componente didática expressiva. No fundo, a arte «sai das paredes» e torna-nos personagens das mesmas.
O valor poderá variar consoante a modalidade, uma vez que têm bilhetes individuais, bilhetes para famílias, para grupos e para grupos escolares. Além disso, aconselho a que reservem a visita atempadamente, para explorarem melhor esta experiência.
Creio que é um excelente programa para miúdos e graúdos. E achei interessante que os cenário tivessem uma imagem explicativa, para compreendermos o propósito, e qual a resolução da câmara/posição do telemóvel, para que fique clara a ilusão e ficarmos com fotografias originais. Só para resumir, poderão encontrar:
Imagens 3D: «várias imagens 3D que oferecem oportunidades de fotografia e diversão para toda a família»;
Quarto de Cabeça Para Baixo: «venha conhecer o nosso quarto ao contrário, o lugar onde a gravidade desafia a imaginação»;
Quarto de Ames: «nesta incrível ilusão, experimente como pode crescer ou diminuir de tamanho ao caminhar de um lado para o outro».
Pata de Ganso, Pedro Teixeira da Mota
O Pedro Teixeira da Mota anunciou o seu mais recente espetáculo de stand up comedy e eu tratei logo de comprar bilhetes, para não correr o risco de perder a oportunidade. Embora não goste de comprar com tantos meses de antecedência, há artistas que faço mesmo questão de ver ao vivo e, como o Pedro é um deles, preferi jogar pelo seguro.
Pata de Ganso sucede a Impasse (centrado nas dúvidas da altura) e a Caramel Macchiato (no qual acreditava já saber quem era). Neste terceiro solo, concentra-se nas suas próprias limitações e fragilidades, que talvez tenham ficado mais evidentes aquando da operação ao joelho. Aliás, o nome do solo não foi escolhido ao acaso (nunca é) e acho que, de todos, foi o mais bem conseguido: não só pela razão óbvia, mas por marcar uma dicotomia muito interessante e que ele nos explica no espetáculo (motivo pela qual não a partilharei, para não estragar a experiência a quem ainda o for ver).
A sua capacidade de observação é fascinante. Há muitas vezes em que discordo dos seus pontos de vista, mas consigo entender o fundamento e onde quer chegar. No final, continuamos a estar em desacordo, mas a verdade é que fiquei a refletir sobre determinada perspetiva que lançou para o centro da discussão. E gosto da forma como é capaz de usar essa atenção ao detalhe no seu humor, que, por si só, é um dos que mais aprecio, porque analisa e desconstrói a realidade e não tem qualquer problema de ser ele o elemento da crítica. Aliás, isso é ainda mais evidente neste espetáculo.
Só tinha visto Caramel Macchiato (Impasse vi no Youtube) e, sem querer comparar, até porque não seria justo (pelo tempo que separa os dois solos e pelo próprio texto), senti-o mais solto, mais à vontade em palco. Sei que esse é o propósito, fruto da evolução e da segurança que se adquire com a prática e a maturidade, mas nem sempre é notório. Aqui foi. E foi-o não só pelo encadeamento da narrativa, mas também pelas pausas, pelos silêncios que respeitam a energia e o retorno do público. Não houve qualquer pressa para chegar ao fim e isso ajudou a estabelecer uma proximidade maior.
Acredito que um dos maiores trunfos do Pedro Teixeira da Mota é mesmo a sua capacidade para contar as histórias. Fui com dois amigos e vínhamos a falar sobre isso, porque ele parece entregar-nos tudo, sempre com graça, mas, depois, quando já passou ao momento seguinte e ninguém está a contar, acrescenta uma referência da história anterior e desarma-nos a todos. Além disso, brinca muito bem com os tempos, é expressivo e sabe agarrar o público - não é por acaso que as datas esgotaram todas. Acho que o facto de não se levar tão a sério também influencia bastante este vínculo.
Antes de concluir, permitam-me só fazer uma pequena nota sobre André Pinheiro, responsável pela primeira parte do espetáculo. Só o conheci em Watch.tm, portanto, não tinha uma opinião formada em relação ao seu stand up. Nota-se que ainda precisa de ganhar ritmo, mas fiquei impressionada e acho que tem tudo para ser um nome relevante no meio humorístico. Talvez daqui a uns tempos seja ele numa tour a solo.
Pata de Ganso teve espaço para falar sobre problemas de joelho, medos, erva, aldeias de sexo e relações familiares. E percebe-se que o texto é de alguém que se está a descobrir. Não sei se, para ele, é um bom ou um mal sinal perceber que «a pessoa que se está a tornar pode não ser a que sempre idealizou», mas, pelo que vi em palco, o caminho é promissor. Estou cada vez mais fã da sua voz na comédia e do percurso que está a construir, porque encontrou o seu lugar, mas pode sempre voar mais alto.
«O que faço a esta dor que não cabe no peito?» [in Peito, Mimicat]
Sendo mana mais velha, fiquei curiosa com o título da Joana 😊
Preciso de maratonar urgentemente o Voz de Cama e já guardei o episódio com o Rui para ouvir 😊
Obrigado pelo seu post, apresentando-me algyns autores que desconhecia mas irei passar a conhecer. Bem haja