Portugalid[Arte] #26
uma viagem com Filipa Leal, Raquel Serejo Martins, Maria Judite de Carvalho, Matilha, Voz de Cama e o Era Uma Vez do mês
[estante cápsula]
O Vestido de Noiva, Filipa Leal
O meu contacto com a Filipa Leal foi sempre feito através da poesia, tanto que assumo logo que apenas a lerei neste género. Mas o seu mais recente livro (que, por este princípio, pensei que fosse poético) permitiu-me descobri-la na prosa.
Gatilhos: Homofobia, Traição
O Vestido de Noiva começa de uma forma peculiar: Branca, a protagonista, atravessa a rua e desloca-se à lavandaria com um pedido específico. Até aqui, nada de estranho, a não ser que vai nua. Nua, descalça, alterada e com uma certa urgência emocional. E isso deixa claro que se passou algo de grave - ou, pelo menos, algo de suspeito.
Não quero detalhar muito, para não revelar aspetos importantes (a história é relativamente curta), mas achei interessante a maneira como o narrador nos conduz pela narrativa, como vai levantando o véu, mas depois nos deixa em suspenso, quase como se sentisse necessidade de partilhar dados surpreendentes, mas voltasse atrás para atar as pontas soltas. Deste modo, vamos embalados numa valsa com um ritmo muito próprio, até compreendermos ao certo o que aconteceu naquele contexto.
Este conto é insólito, com um tom cómico, mas que levanta questões relevantes sobre identidade, relações amorosas/familiares, preconceitos e tudo aquilo que tentamos esconder dos outros e de nós. É curioso como há pessoas que vivem anos juntas, partilhando casa, experiências e sentimentos, e nunca se chegam a conhecer realmente. É curioso e igualmente desolador, porque se torna evidente que há muita coisa que falta, a começar pela verdade, pela comunicação e pelo respeito mútuos.
Há um jogo de sombras que vai expondo as personagens, que as vai confrontando com as suas fragilidades e os seus medos. Estão todas sob escrutínio alheio, a tentar proteger-se, a tentar preencher vazios. Partindo de situações complexas, mas dentro de um contexto trivial, credível, vamos cruzando diferentes perspetivas.
O Vestido de Noiva reveste-se de passagens sarcásticas, mas é um retrato interessante de como o desgosto, a raiva e a desilusão nos podem toldar o discernimento. Há momentos em que nos sentimos tão traídos, que só queremos infligir a mesma dor, no entanto, perante ocasiões de maior lucidez, há valores que falam mais alto.
🎧 Música para acompanhar: Talvez Se Eu Dançasse, Miguel Araújo
A Solidão dos Inconstantes, Raquel Serejo Martins
O ser humano é volúvel: nos comportamentos, nos sentimentos e, até, nos sonhos. Talvez por ser feito de tantas dúvidas e ter tantas perguntas na ponta da língua (ou a alvoraçar o lado esquerdo do peito). E é por este terreno incerto que deambulamos no livro de Raquel Serejo Martins, que foi autora do Alma Lusitana no ano transato.
Gatilhos: Violência Doméstica, Referência a Doença Oncológica
A Solidão dos Inconstantes é maioritariamente narrado por Rita e é através dela que ficamos a conhecer as pessoas que a rodeiam, tão diferentes entre si, as suas vidas, os seus passados e tudo aquilo que lhes aconteceu - ou tudo o que não chegou a descobrir.
O discurso é próximo, sem rodeios, apenas marcado pelo emaranhado de emoções e perguntas que vão surgindo: pela curiosidade, pela saudade e pela necessidade de unir as pontas soltas. Confesso, ainda assim, que nem sempre consegui estabelecer um vínculo com a narradora, isto porque tanto me parecia alinhada com a energia do livro, com as inconstâncias da vida, como a sentia distante, a falar dos seus como se estivesse num lugar superior, sendo quase condescendente com as suas atitudes. Portanto, esta voz oscilante fez com que, também eu, andasse um pouco à deriva.
Tenho, por outro lado, de lhe dar mérito por ser credível e, sobretudo, por se manter fiel aos seus princípios: sendo frontal sem ser rude, sendo vulnerável sem perder o norte; não procurando mudar a sua essência para encaixar na vontade/nas expectativas dos outros. Se calhar, por isso é que nunca deixou de ir, mesmo que sentisse falta.
Há um foco muito grande no estado de espírito das várias personagens (que podem surgir só pelo encadear de memórias/momentos) e foi isso que mais me agradou neste romance. Isso e quando Rita opta por se colocar mais no centro da questão. No fundo, quando deixa de ser apenas espectadora dos seus e assume o protagonismo é quando me prende a todos os seus problemas, às suas hesitações, aos seus desejos e às suas angústias, porque é nesse ponto que a conhecemos verdadeiramente.
A Solidão dos Inconstantes é feito de medos e de desencontros, e traz retratos muito fidedignos de pessoas comuns, que escondem tantos mundos dentro. Apesar de não me ter arrebatado em pleno, abre vários pontos de reflexão e achei interessante que, depois de rasgos de solidão, termine quase com uma noção de esperança.
🎧 Música para acompanhar: Eu Te Amo, Chico Buarque
Obras Completas Volume IV, Maria Judite de Carvalho
O compromisso de descobrir a voz de Maria Judite de Carvalho começou em junho, de 2023, através do Alma Lusitana. Foi uma viagem fabulosa, que conclui neste primeiro mês do ano. Confesso que, assim que fechei o último livro, me senti um pouco órfã, mas regressarei às suas palavras - impensável não o fazer, porque marcou-me mesmo.
Gatilhos: Referência a Suicídio
As janelas mostram-nos diferentes paisagens, porém, quando abrimos as suas portadas, não sabemos bem a extensão do mundo que se estende para lá do horizonte visível, nem a quantidade de memórias que guardam todos esses lugares ocultos.
Neste quarto volume, a autora embala-nos por esta perspetiva, como se cada conto e cada crónica fosse uma janela nova, da casa de alguém que não conhecemos, mas que (também) podíamos ser nós, alguém próximo. E é fascinante como, escrevendo sobre várias pessoas sem nome, nos inclui a todos, como nos torna quase protagonistas.
Os cenários do dia a dia elevam-se pela narração, pelo olhar atento aos detalhes e por conjugar com tanta mestria problemas, vivências, amores e angústias. Através de um monólogo plural, que mergulha ao fundo da alma humana, consegue equilibrar muito bem apontamentos mundanos, coisas muito suas e comportamentos transversais. Por isso, temos retratos de personalidades comuns sem que isso se torne maçador.
As palavras da autora transbordam humanidade. Mas também sombra e poesia.
🎧 Música para acompanhar: Duas Casas, Stereossauro & Capicua
[gira-discos]
A playlist desta semana inclui: A Pessoa Que Você Mais Ama (Tiago Nacarato & Paulo Novaes), Filho do Vento (Dino d'Santiago), Por Amor (Marisa Liz), tudoparachegarati (Jüra) e Quero Ser Norte (Mariana Dalot).
O gira-discos tem um álbum novo: Cara de Espelho (Cara de Espelho).
[caixa mágica]
Matilha Ep.2
O segundo episódio de Matilha tem vários focos de tensão: um grupo de criminosos assalta um hipermercado e as coisas não correm como planeado. Enquanto Matilha e Mafalda são apanhados no meio desta ocorrência, cada um com um papel bastante distinto, o inspetor Lacrau continua a investigar um homicídio que aconteceu na zona ribeirinha. Além disso, temos um episódio de assédio insistente, que é um retrato explícito de todos aqueles que, em cargos superiores, se aproveitam da vulnerabilidade alheia, de todos os que se aproveitam de quem precisa de ajuda, a passar por dificuldades e a lutar pela sua sobrevivência. A forma como estes pólos se interligam e influenciam é intrigante e aumenta a curiosidade em relação ao desfecho.
[cartaz]
Voz de Cama
O Voz de Cama é, neste momento, uma companhia regular. Até aqui, ia ouvindo episódios pontuais, mas, desde que comprei bilhete para o espetáculo ao vivo, assumi o compromisso de maratonar o podcast, até porque acho fascinante o trabalho que a Tânia Graça e a Ana Markl desenvolvem com o projeto. É uma dupla que, entre si, combina muito bem e, além disso, consegue equilibrar várias frentes: ser educativa, elucidativa, descomplicada e com uma boa dose de entretenimento e leveza.
Há dilemas com os quais é fácil estabelecermos ligação: porque passamos por uma experiência semelhante, porque temos dúvidas idênticas ou porque já nos debatemos com aquelas questões. Por outro lado, é possível que compreendamos melhor alguns gatilhos, que percamos fé numa parte da humanidade e que queiramos abraçar ouvintes (por causa daqueles que nos fazem perder esperança no outro). Em todos os episódios que tinha ouvido, dei por mim a querer fazer parte da conversa, portanto, contava que esta versão ao vivo me despertasse a mesma reação. E não me enganei.
A primeira data do Voz de Cama esgotou num sopro, portanto, fomos ao segundo espetáculo. Na segunda noite, que durou quase duas horas (sem que déssemos pelo tempo a passar), houve dois convidados: Peter Castro, com um vasto conhecimento histórico/político, com quem debateram um e-mail dentro desse tema, envolvendo pessoas (aparentemente) de partidos políticos opostos, e Tiago Nacarato, músico com uma voz que adoro, para conversarem sobre a possibilidade de um terceiro encontro com alguém que não desperta em nós um certo arrebatamento. No final do espetáculo, o Tiago ainda nos brindou com o maravilhoso tema A Pessoa Que Você Mais Ama.
Entre estes dois momentos, foi dada a possibilidade de alguém do público subir a palco e, devo confessar, foi a parte que menos apreciei: não pela dinâmica, mas por achar que a pergunta precisava de outra contextualização, precisava que a Tânia e a Ana tivessem margem para se informarem. Como não partiu de um dilema próximo da participante, tornou-se mais difícil de analisar, apesar de ser um tópico interessante, já que questionou sobre a interação entre pessoas dentro do espectro do autismo. Ainda assim, mesmo sem terem dados concretos, foram fabulosas na forma como procuraram debater o assunto e chegar a um lugar com sentido - não a uma conclusão fechada, porque não seria possível, mas a um patamar que tivesse lógica, fosse seguro.
Assistir a este evento numa sala cheia, sem preconceitos espelhados, sem desconforto e com a plateia a reagir aos vários tópicos em discussão foi maravilhoso. De repente, era como se estivéssemos entre amigos e não numa sala de teatro. E acredito que esta proximidade só é possível pela energia que as duas transparecem e pelo trabalho que desenvolvem com o podcast. Elas ocupam muito bem o lugar de fala do qual dispõem e fazem isso sem qualquer tipo de moralismo. Vê-las a desconstruir ideias e a dar visibilidade a temas vitais para o ser humano - e para as relações intra e interpessoais -, não duvido, torna-nos melhores pessoas (para nós e para os outros). Podem regressar mais vezes ao Porto. Até lá, continuarei a escutá-las atentamente no Voz de Cama.
[era uma vez, na música]
A música é uma das maiores constantes da minha vida, por adorar o dialeto desta arte e por ser extremamente difícil passar um dia sem ouvir algum tema, algum álbum.
Cá em casa, há sempre listas para acompanhar vários momentos da rotina e não perco a oportunidade de me cruzar com novas sonoridades, por isso é que, todas as sextas, vejo os lançamentos no Spotify: porque é uma forma de manter perto vários artistas.
No fim, compreendo que crio uma autêntica manta de retalhos, com vozes e géneros distintos, mas é este registo que funciona comigo, já que consigo ir alternando consoante a predisposição. Acho mesmo enternecedor como um tema nos emociona, como um disco muda o nosso estado de espírito. É através da música que também encontro guarida para as minhas emoções, portanto, estreito sempre os nossos laços.
Mas, no meio de tantos nomes, é natural que alguns passem mais despercebidos, é natural que alguns se tornem mais prioritários e, inclusive, que comecemos a largar a mão de outros. O nosso crescimento, mesmo que não nos apercebamos de imediato, também implica esta oscilação, pois aprimoramos os nossos gostos, temos uma consciência maior daquilo que nos serve e daquilo com que já não nos identificamos.
Por outro lado, há ocasiões em que, no meu cenário de conforto, completamente perdida nas letras de um artista dou por mim a pensar no quanto gostaria que fosse mais falado, mais celebrado, mais ouvido. Reforço, no meio de um panorama musical com tantos nomes (e extraordinários), é natural que não consigamos acompanhar todos, mas há alguns que me doem mais no coração por não terem tanta visibilidade.
Foi em conversa com a Sofia, quando partilhou comigo que estava a ouvir A Garota Não, que esta ideia surgiu, porque é um exemplo perfeito do pensamento anterior. Assim, voltei a percorrer as minhas playlists no Spotify, e agreguei algumas artistas mulheres que, para mim, para além do talento inigualável, mereciam mais palco.
Claro que esta noção é bastante subjetiva, porque nem sempre os nossos gostos estão alinhados no mesmo comprimento de onda, mas são intérpretes e compositoras que me inspiram e que cantam muito daquilo que também me palpita no peito.
Jüra
A Garota Não
Rita Vian
Iolanda
Mimicat
Milhanas
Rita Onofre
Inês Marques Lucas
Ana Lua Caiano
Rita Borba
«diz que a nossa casa é na asa de uma gaivota»
[in Duas Casas, Stereossauro & Capicua]